Quarta-feira, 1º de abril, é um dia decisivo para todos jornalistas. A Revi
reproduz neste espaço a matéria de Elias Machado, publicada nesta terça-feira,
31 de março, no Observatório
da Imprensa:
Nesta quarta-feira, dia 1º de abril, o Supremo
Tribunal Federal aprecia o parecer do ministro Gilmar Mendes sobre o recurso do
Ministério Público Federal contra a decisão do Tribunal Regional Federal de São
Paulo, que manteve a exigência da formação superior específica e o registro na
Delegacia Regional do Trabalho para o exercício da profissão de jornalista,
quando do julgamento da liminar concedida pela juíza substituta Carla Rister, em
2001, que possibilitou a todos o ingresso no jornalismo profissional, sem a
necessidade de qualquer formação especializada, superior ou não.
A
apelação sustenta, com o apoio da Procuradoria-Geral da República, que os
pré-requisitos contidos no Decreto-Lei 972/69 são contrários aos artigos 5º e
220 da Constituição Federal de 1988, que afirmam que é livre a expressão da
atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente
de censura ou licença; é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou
profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer e que
a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob
qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o
disposto nesta Constituição.
Qualquer que seja o pronunciamento final do
STF, a decisão será histórica e provocará profundas conseqüências na organização
da imprensa no país, na consolidação dos jornalistas como uma categoria
profissional, no modelo adotado no ensino superior para a formação de
jornalistas e, acima de tudo, na qualidade das informações a que terão acesso
todos os cidadãos.
Direito inalienável
A tese sustentada
pela apelação, da inconstitucionalidade da exigência de formação superior
específica e do registro no Ministério do Trabalho, como evidenciado na decisão
do Tribunal Regional Federal de São Paulo, que acolheu o recurso da Federação
Nacional dos Jornalistas, contraria em parte o conteúdo manifesto na
Constituição de 1988, que afirma que "é livre o exercício de qualquer trabalho,
ofício ou profissão, desde que atendidas as qualificações profissionais que a
lei estabelecer".
Ora, como atividade especializada cujo exercício
pressupõe o domínio de conhecimentos conceituais, técnicos e deontológicos, o
jornalismo constitui-se como profissão regulamentada desde 1969 e está
formalmente integrado ao sistema de ensino universitário há 60 anos, com mais de
380 cursos oferecidos em todas as unidades da federação, existindo, pois, como
de resto em todas as demais profissões regulamentadas, exigências legais para a
atuação como jornalista profissional.
Como não poderia negar a
existência da legislação que determina o cumprimento de pré-requisitos para a
prática do jornalismo, uma limitação que como se verificou está prevista no
texto constitucional, coube, como última alternativa à apelação, instar o STF a
se pronunciar sobre a constitucionalidade ou não do Decreto-Lei 972/69, alegando
que representa um dos resquícios vigentes do entulho autoritário imposto durante
a ditadura militar de 1964-1985.
A discussão proposta pela apelação
sobre a exigência da formação superior vem sendo feita em termos da
interpretação da sua constitucionalidade ou não, uma posição que, quando da
apreciação do mérito do caso, torna-se muito questionável, uma vez que
desconsidera o plano concreto dos benefícios que a medida trouxe para a
qualificação da imprensa, para a dignidade da profissão de jornalista, para a
consolidação do jornalismo como área científica e acadêmica e para a
democratização do acesso às informações na sociedade. Mas, antes de argumentar
sobre as conseqüências negativas da prática do jornalismo por qualquer um,
independentemente de ter formação superior ou não, creio que seja essencial
salientar que a possibilidade da manifestação do pensamento individual, direito
inalienável de todo cidadão, jamais deveria ser confundida com o exercício de
uma profissão.
Conteúdo menos diversificado
Como se pode
comprovar de forma empírica no caso da informação jornalística, em nenhuma
sociedade fundada no Estado Democrático de Direito existe a garantia da
liberdade do exercício profissional para todos os indivíduos, cabendo a sua
produção e disseminação a profissionais especializados, que atuam de acordo com
as normas previstas na forma da lei e respondem criminalmente pelos excessos
cometidos.
A grande maioria das pessoas, em qualquer que seja o país
democrático, como ocorre com o exercício das demais profissões regulamentadas,
está alijada do processo de produção de informações jornalísticas, seja porque
não reúne as competências necessárias para atuar na função, seja porque a
atuação na área pressupõe dedicação plena e o vínculo como contratado ou
colaborador com as instituições do ramo.
O que cabe discutir aqui,
portanto, é em que medida a formação superior especializada contribui para
melhorar a qualidade das informações difundidas, para aumentar a dignidade dos
trabalhadores deste setor, para a legitimação desta área acadêmica e científica
e para a democratização da sociedade.
A simples consulta às coleções de
jornais publicados até meados dos anos 50, no século passado, existentes nas
bibliotecas e museus, permite avaliar que, com a exceção dos articulistas ou
cronistas, antes da exigência da formação superior específica o conteúdo das
informações era menos diversificado, a qualidade do texto das notícias e a
exposição gráfica sofríveis, o rigor na apuração quase inexistente e a falta de
objetividade aceita como algo normal e inquestionável.
Uma vida de
penúria
Até as reformas editoriais desenvolvidas nos anos 1950, por
coincidência logo depois da criação dos primeiros cursos de Jornalismo no país,
sem o menor constrangimento um jornal de elite, como o Jornal do Brasil,
reservava quase toda a primeira página para publicar anúncios, como se fosse
natural que o espaço mais nobre do jornal fosse ocupado pela publicidade em
detrimento do conteúdo editorial. Uma prática deplorável, por sinal, mais comum
hoje do que seria recomendável nas capas dos cadernos das edições dominicais de
alguns jornais de referência do Rio de Janeiro ou de São Paulo.
Com
todos os defeitos que a imprensa atual possa apresentar – e não se pretende
negar aqui as deficiências do nosso jornalismo, como chamamos a atenção na volta
da publicidade sem limites, na falta de objetividade em períodos eleitorais ou
de erros grosseiros de apuração, como no caso da Escola Base –, dificilmente, se
fizermos uma análise objetiva entre a imprensa antes e pós-regulamentação
profissional, poderíamos afirmar que existem evidências de que a exigência da
formação superior provocou uma queda na qualidade do jornalismo praticado no
país em quesitos como: diversidade de conteúdos, rigor na apuração, objetividade
no tratamento das fontes, nível do padrão estético adotado e aplicação de normas
éticas, apenas para citar alguns aspectos que poderiam ser sistematicamente
avaliados.
Aos defensores da volta ao passado, recomendo uma leitura
atenta das memórias e biografias de jornalistas da velha guarda, que atuavam
antes da exigência da formação superior, para que possam ter uma noção da
situação de penúria vivida pelos colegas de então, obrigados a se dividirem
entre três e quatro empregos. "A imprensa daquela época", como relembra o
célebre repórter gaúcho Carlos Reverbel no livro de memórias Arca de Blau,
"costumava estimular o segundo, o terceiro e o quarto emprego, como garantia de
que o jornalista, assim, não perturbaria o patrão com os inconvenientes pedidos
de aumento de salário."
Padrão que não deixa a desejar
No
caso de Reverbel, que dividia o tempo entre a Caldas Júnior (Correio do Povo e
Folha da Tarde), a assessoria de imprensa do secretário de educação, Coelho
Souza, e as colaborações com a Revista do Globo, as três fontes de renda,
reunidas, não eram suficientes para que o padrão de vida do jornalista
ultrapassasse o nível das pensões e dos restaurantes baratos. Se alguém pensa
que a situação de Reverbel representava uma exceção está enganado. Ocupação
desprezível, o jornalismo era considerado um trampolim para a vida política ou
para um emprego público. Nem sequer piso salarial existia. Era comum, como
relata Carlos Heitor Cony, em Quase memória, o pagamento na forma de vales,
serviços ou mercadorias, como acontecia com o pai de Cony, quando trabalhava no
Jornal do Brasil.
A falta de dignidade para o exercício da profissão
levou jornalistas de renome, como Simões Lopes Neto e Lima Barreto, a passarem
por várias dificuldades financeiras. Lima Barreto, como antes fizera Machado de
Assis, que trabalhou no Ministério de Obras, dependia do emprego de amanuense no
Ministério da Guerra, tendo que colaborar ao mesmo tempo com diversas
publicações. Simões Lopes Neto, durante uma boa parte da vida de colaborador,
sequer recebia salário e, quando morreu, deixou a família na mais absoluta
miséria, sem direito a uma pensão que garantisse o mínimo necessário para a
sobrevivência da mulher e da filha adotiva. Consagrado como bico, o jornalismo
não era considerado uma profissão e o jornalista, conseqüentemente, tampouco era
tido como um profissional que deveria ser retribuído por seu trabalho.
A
exigência da formação superior contribuiu para o aumento do nível intelectual
dos jornalistas, garantiu um respeito público e dignidade para a profissão, que
alcançou status universitário, e, mais importante que todos estes fatores,
repercutiu favoravelmente nos salários pagos, através da criação dos pisos
salariais mínimos, que agora tinham que ser compatíveis com uma profissão
exercida por um bacharel. Com um nível cultural mínimo para o ingresso na
profissão, a imprensa brasileira atingiu, nos melhores exemplos, um padrão que
nada deixa a desejar aos demais países e, no caso da universalização da formação
superior, abriu caminho para um modelo que faz com que o Brasil hoje ostente
índices de formação superior na área de jornalismo acima dos alcançados por
Estados Unidos, França, Itália e Inglaterra.
Avanços
acadêmicos
A obrigatoriedade da formação superior específica ao mesmo
tempo em que resultou, em parte, da própria criação dos cursos de Jornalismo no
final dos anos 40, atendendo a uma reivindicação histórica dos jornalistas que
remontava ao começo do século, com o trabalho do catarinense Gustavo Lacerda,
colaborou para a disseminação dos cursos superiores por todas as unidades da
federação e estimulou o estudo científico do jornalismo. Em meados dos anos
1950, o total de cursos se resumia a meia dúzia, limitando-se a formação a
estados como São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia e Rio Grande do Sul. Hoje, o
número de cursos ultrapassa a marca dos 380, com mais de 10 mil titulados por
ano em todos os estados do país.
Como ocorre em todas as áreas do
conhecimento, a formação superior levou à constituição de expressiva comunidade
de professores de jornalismo, estimada hoje em mais de 4 mil profissionais. A
chegada dos jornalistas aos bancos acadêmicos fez com que mudasse por completo o
perfil dos cursos de Jornalismo, antes muito desvinculados do mercado de
trabalho, uma vez que a maioria dos docentes vinha das Humanidades, tendo pouca
ou nenhuma vivência com o cotidiano da profissão. Se antes o ensino do
jornalismo era visto como um bico ou a única alternativa para profissionais mal
sucedidos, cada vez mais, os cursos de Jornalismo contam em seus quadros com
jornalistas renomados, com experiência comprovada na realidade de mercado.
A consolidação do jornalismo como área acadêmica possibilitou que o
estudo científico do jornalismo obtivesse legitimidade, transformando o Brasil
em um dos países que possui uma das comunidades científicas mais significativas
no mundo. Na atualidade, a Associação Brasileira dos Pesquisadores em Jornalismo
conta com mais de 380 associados, sendo mais de 160 doutores, vários deles
integrantes do quadro de pesquisadores do CNPq, privilégio inimaginável para um
jornalista contemporâneo de Machado de Assis ou Carlos Reverbel, que nem ao
menos eram merecedores de um piso salarial mínimo como contrapartida ao trabalho
realizado nas redações, sendo forçados ao duplo emprego e à mamata nos cargos
públicos.
Ofício indigno ou avanço profissional
Como
qualquer atividade profissional em uma sociedade complexa como a nossa, o
jornalismo pressupõe uma formação superior específica. O grau de especialização
do conhecimento nas mais diversas áreas de cobertura exige que o profissional do
jornalismo tenha uma formação conceitual, técnica e deontológica que possibilite
uma compreensão objetiva da realidade. A rigor, o conhecimento científico
existente sobre o jornalismo impede que um leigo possa desempenhar a prática
profissional com um mínimo de qualidade, como antes acontecia nos tempos da
imprensa artesanal e de uma sociedade infinitamente menos complexa.
Se a
exigência da formação superior específica garantiu a dignidade dos
profissionais, melhorou a qualidade média do jornalismo, democratizou o acesso
aos cursos e legitimou o jornalismo como objeto científico a pergunta que fica
é: a quem interessa a volta ao passado, com o fim destas conquistas históricas
de toda a sociedade? Certamente não é ao cidadão que necessita de informações de
qualidade, apuradas com rigor e objetividade, para se posicionar e participar
ativamente na esfera pública, muito menos aos profissionais do jornalismo e às
comunidades científica e acadêmica da área.
Cabe agora ao STF julgar o
caso e promulgar uma decisão histórica que, dependendo da sentença, pode
reconduzir o Brasil aos tempos em que o jornalismo era um ofício indigno, um
bico exercido por qualquer um, ou, ao contrário, reconhecer os avanços de mais
de 60 anos de ensino universitário de jornalismo no país e de 30 anos de
regulamentação profissional e confirmar o acórdão publicado pelo Tribunal
Regional Federal de São Paulo, que manteve a constitucionalidade da exigência da
formação específica para o exercício do jornalismo.
*Jornalista e doutor em Jornalismo, professor na Universidade Federal de Santa Catarina e pesquisador do CNPq.