O jornalista gaúcho Marcos Rolim, ex-deputado federal pelo PT, tem larga experiência nos campos da segurança pública e dos direitos humanos. Consultor de órgãos públicos e ONGs, com trabalhos realizados para a Unesco e a Unicef, Rolim produziu, em 2003, uma ampla pesquisa sobre experiências de sucesso em segurança pública, que resultou no livro “A Síndrome da Rainha Vermelha: Policiamento e Segurança Pública no Século 21”. Ele atua, ainda, como professor de Direitos Humanos do Centro Universitário Metodista (IPA), em Porto Alegre, e assessor na 6ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do RS. Rolim virá a Joinville para o 3º Seminário de Gestão Prisional, Segurança Pública e Cidadania, uma iniciativa do Conselho Carcerário da Comunidade. Nesta entrevista exclusiva, o consultor critica o sensacionalismo e a “ausência de abordagens reflexivas” por parte da mídia brasileira no trato da segurança pública, o que contribuiria para uma “sensação de insegurança” acima do que se justificaria diante da realidade atual. Segundo ele, o medo exagerado do crime “termina por se constituir em um novo fator na gênese da criminalidade”, ao fragilizar o poder reativo das comunidades. “As pessoas tendem a não sair de casa à noite. Na ausência da vigilância natural oferecida pelo público, traficantes e outros infratores se sentem mais à vontade para agir”, afirma.
Como a sociedade brasileira trata a questão da segurança pública?
Temas complexos como os definidos pela expressão “segurança pública” necessitam de rigoroso debate capaz de selecionar as melhores políticas públicas em cada área. Mas, por vários motivos, esse debate tem sido impossível no Brasil. Primeiro, porque os temas da segurança agregam facilmente uma dimensão irracional, marcada pelas simplificações e, não raro, pelas respostas violentas do Estado. Isso é comum quando as pessoas se sentem inseguras além do que seria legítimo suportar em uma sociedade moderna, como ocorre no Brasil. Em segundo lugar, as universidades não despertaram para a necessidade de desenvolver centros de excelência na área e criar linhas específicas de pesquisa sobre violência, criminalidade e segurança pública. Com poucas exceções (UFMG, USP, Cândido Mendes, UFRGS etc.), a academia brasileira segue não oferecendo à segurança a atenção necessária. Por fim, a postura dos diferentes governos – em todos os níveis – tem sido responsável pela oferta de respostas tradicionais, repressivas, que têm sido mais parte do problema do que da solução. Não há debate no Brasil sobre política de segurança, o que facilita a tomada de soluções equivocadas pelos governantes.
Um dos alvos constantes de crítica nesse campo é o sistema prisional...
De fato, a realidade prisional brasileira é uma das piores do mundo. Ao lado da superlotação carcerária, temos a situação degradante de instituições formatadas para o que denomino “execução penal do horror”, na qual os direitos dos internos são solenemente ignorados e a própria condição humana se descobre suspensa pelo arbítrio e pela violência. Nos últimos anos, tivemos dois avanços dignos de nota: o fim da exigência dos laudos técnicos para a progressão de regime e a decisão do Supremo Tribunal Federal, que reconheceu como inconstitucional a proibição da progressão constante no artigo 2º da tristemente célebre “Lei dos Crimes Hediondos”. Em compensação, tivemos o retrocesso da legalização do Regime Disciplinar Diferenciado (RDD).
No seminário, seu painel vai tratar de “crime organizado e as relações entre legislação, mídia e segurança pública”. De que forma a exposição do crime organizado na mídia contribui (ou dificulta) a ação da polícia e da justiça?
O próprio conceito de “crime organizado” é equívoco e encerra o risco de ser empregado para justificar qualquer medida de endurecimento penal, sem que se demonstre, concretamente, os resultados colhidos por medidas do tipo. No Brasil, a expressão tem se referido, basicamente, ao tráfico de drogas, mas ninguém se lembra dela quando nos defrontamos com as práticas de corrupção política que, como regra, são bem mais “organizadas”. A forma como a imprensa trata do crime e da violência é um capítulo à parte. De maneira geral, o problema está vinculado à transformação daqueles fenômenos em um espetáculo rentável, com o qual se busca a conquista e a fixação de audiência. Daí a tendência ao sensacionalismo e à ausência de abordagens mais reflexivas e plurais. A maior parte da mídia termina por amplificar a demanda punitiva disseminada socialmente e contribui para que estejamos vivendo uma extraordinária “sensação de insegurança”, fenômeno que, como se sabe, nem sempre guarda relação direta com os riscos enfrentados pelos diferentes grupos sociais.
Quais os reflexos disso na vida das pessoas?
Ocorre que o medo do crime, quando situado acima do que seria realista, termina por se constituir em um novo fator na gênese da criminalidade. Assim, por exemplo, se uma comunidade experimenta um significativo medo do crime, as pessoas tendem a não sair de casa à noite. Com isso, deixam de freqüentar reuniões comunitárias, não trocam mais impressões com seus vizinhos e conhecidos, não se organizam socialmente e perdem a chance de demandar, coletivamente, providências junto às autoridades. O medo fragiliza o poder das comunidades. Por outro lado, se as pessoas não freqüentam mais os espaços públicos, se não vão mais à praça do bairro, se as ruas estão vazias à noite, temos condições ideais para aquelas dispostas a cometer crimes ocuparem esses espaços. Na ausência da vigilância natural oferecida pelo público, traficantes e outros infratores se sentem mais à vontade para agir.
Outra percepção comum no país é a de que a impunidade só faz crescer. Isso corresponde à realidade?
O problema da impunidade é outro dos fatores da criminalidade moderna. Só que o tema pouco tem a ver com a legislação penal. Se quisermos diminuir as taxas de impunidade, será preciso melhorar a capacidade investigativa de nossas polícias. Hoje, nove em cada dez inquéritos policiais são piadas de mau gosto, procedimentos cartoriais incapazes de produzir a prova necessária à condenação. Se a polícia do RJ só consegue apontar dois suspeitos em cada 100 crimes de homicídio, de nada adiantará fixar penas mais graves para esse crime, pois a maioria dos autores seguirá desconhecida. O raciocínio é o mesmo para os atos infracionais cometidos pelos adolescentes. Na esmagadora maioria das vezes, “não dá nada”, como os próprios jovens falam, não porque a lei seja benéfica ou inadequada, mas porque não se identificam os culpados.
E reduzir a maioridade penal seria uma solução?
Significaria, somente, mandar para as cadeias os adolescentes identificados. A maioria continuará, como hoje, impune e sem qualquer tratamento que autorize uma mudança de prognóstico em suas vidas. A ilusão da opinião pública é de que, se as penas forem mais graves, os adolescentes “pensarão duas vezes” antes de cometer delitos. Se fosse verdade, a curva para os autores de homicídios no Brasil não alcançaria seu pico aos 20 anos, como ocorre, mas aos 18, início da idade penal. Da mesma forma, os crimes hediondos teriam caído após a aprovação em 1990 de uma das mais rigorosas leis penais de nossa história republicana, quando, como se sabe, ocorreu o oposto: a partir da nova lei mais repressiva, todos os crimes definidos como “hediondos” aumentaram (resultado ao qual também se teria chegado se a lei tivesse outro sentido, pois não há relação direta entre as dinâmicas criminosas e a legislação penal). Essa discussão inútil só estimula o discurso daqueles que são incapazes de oferecer qualquer política de segurança séria ao país.
Haveria alguma alternativa para a punição de crimes cometidos por menores de idade?
Vejo um problema de desproporção das sanções que poderia ser resolvido com uma reforma do próprio Estatuto da Criança e do Adolescente. O Estatuto fixou três anos como prazo-limite de internação. Penso, pelo contrário, que seria correto prever para alguns poucos perfis mais agravados prazos maiores. Não me parece que seja justo que um jovem de 18 anos autor de furto qualificado possa cumprir pena de prisão maior que o período de internação de um adolescente de 17 anos que tenha praticado duplo homicídio.
É possível construir uma política de segurança pública que funcione no Brasil?
Para tanto, será preciso romper com a tradição de improviso, demagogia e ideologização em torno do tema. Precisamos efetivar uma agenda pública de reforma que dialogue com as ciências sociais, notadamente com a criminologia moderna, trabalhando a partir de evidências. Em segurança pública, devemos ter cuidado com as opiniões, porque muitas delas matam. Trata-se de um tema complexo que exige um tratamento multidisciplinar para a formação de diagnósticos competentes, a participação da sociedade civil em fóruns organizados para a construção de políticas públicas – e, portanto, de democracia e consciência cidadã –, a reforma das polícias, com a introdução de formas modernas de gestão, monitoramento constante de resultados e o desenvolvimento de programas integrados de governo que mobilizem todos os recursos do Estado, e não apenas suas polícias.
Como combater o problema da corrupção policial no país?
A corrupção é, como em qualquer outra instituição, o resultado direto da ausência de controle público, da falta de transparência dos procedimentos administrativos e da ausência de gestão democrática. Trata-se de um problema seriíssimo que, em alguns Estados, transformou partes expressivas das instituições policiais em sócias majoritárias de empreendimentos criminosos. Nesses casos, em que a degradação moral atingiu níveis muito altos, será uma ilusão pensar em reformar as instituições policiais. Aqui, se ganharia tempo e dinheiro se fosse possível “começar de novo”, criando novas instituições. Para isso, será preciso desconstitucionalizar o modelo de polícia no Brasil; uma proposta que constava no programa de segurança do primeiro mandato de Lula e que foi completamente esquecida pelo governo. Vale lembrar, ainda, que a “polícia” brasileira é composta por várias polícias. De todas elas, parece evidente que apenas a Polícia Federal tem um desempenho que se pode considerar bom, além de uma missão institucional claramente definida. As polícias militares, por um lado, e as polícias civis, por outro, são, na verdade, “duas metades de polícia”, já que nenhuma delas possui o “ciclo completo” da atividade policial. Uma parte de nossos problemas começa nessa invenção esquizofrênica de um modelo de polícia formado por duas instituições que não se integram, porque, em larga medida, disputam o mesmo espaço.
Qual a solução para o caos que se vive nas favelas cariocas? O sr. concorda com o envio de tropas do Exército para lá?
Já se mandou tropas do Exército para o Rio de Janeiro em outras oportunidades, com resultados sempre situados entre a tragédia e a comédia. Já deveria ser suficiente para que a medida não autorizasse muitas expectativas. As Forças Armadas podem cumprir um papel relevante na segurança interna do país, mas em atividades condizentes com a formação militar. Assim, por exemplo, acredito que poderiam, em conjunto com a Polícia Federal, organizar e implementar planos mais amplos de combate ao tráfico de drogas e ao tráfico de armas, inviabilizando as rotas principais de ingresso de drogas e armas no Brasil. Diferente de fixar blindados na entrada de favelas ou “policiar” aglomerados urbanos superpovoados com fuzis AR-15.
Guilherme Diefenthaeler é jornalista e professor do curso de jornalismo do Bom Jesus/ Ielusc