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Matéria 9727, publicada em 31/05/2010.


:Arquivo Bom Jesus/Ielusc

Órgão foi reformado em 2008

Gigante dos sons completa cem anos em 2011

Kamila Cechet Schneider*



Terça-feira, seis de abril de 2010. O ponteiro do relógio se aproxima das 17 horas. Dentro da Igreja da Paz, no Centro de Joinville, há quase uma hora reverbera o som de um instrumento antigo, com quase um século de existência. O som semelhante ao da flauta, ampliado centenas de vezes, torna o timbre doce e característico do órgão de tubos familiar aos ouvidos de quem passa. Os acordes alcançam até os ouvidos mais desatentos na beira da estrada, como se fossem o assovio de um passarinho distante.

Dentro da construção imponente, com 146 anos de história, a professora permanece em silêncio enquanto a aluna movimenta agilmente seus dedos sobre as teclas do instrumento. As notas rápidas da melodia parecem ser a única coisa viva no interior do templo. De forma carinhosa, porém firme, a professora interrompe a aluna e descreve em palavras o que precisa mudar entre os sons. “Você precisa variar mais, para não ficar robótico”, diz. E o som continua, sempre em busca de uma espécie de perfeição.

Habitante da Igreja da Paz desde 1911, quando foi adquirido pela comunidade luterana de Joinville, o órgão de tubos alemão é parte viva da paróquia. Utilizado em cultos e concertos, o instrumento faz parte da vida de muitos fiéis que, desde pequenos, vinham à igreja cantar sob seu som aveludado. Para muitos, é impossível conceber a Igreja da Paz sem o majestoso órgão que a completa. Hoje, além de fazer parte da igreja, o órgão ajuda a disseminar a cultura em Joinville. Através de concertos com organistas brasileiros e estrangeiros, a comunidade conhece, aos poucos, a história deste precioso instrumento que, no ano que vem, completa seu centenário.

Lucy Mary da Costa Leão, organista há 26 anos, é “amiga” íntima do órgão de tubos da Igreja da Paz há cerca de 15 anos. A musicista, natural de São Paulo, começou a estudar o instrumento após tê-lo conhecido pessoalmente em Joinville, quando ainda tocava piano. Atualmente, exerce uma função de responsabilidade dentro da comunidade joinvilense: dar vida a um instrumento complexo com muita representatividade simbólica.

Desde que o órgão de tubos foi restaurado, em 2008, Lucy Mary trabalha para ensinar aos seus três alunos a arte de comandar um dos mais impressionantes instrumentos musicais já criados pelo homem. A iniciativa é reflexo de uma parceria entre a Igreja da Paz e a Casa da Cultura, através da Escola de Música Villa Lobos e, segundo a presidente da paróquia, Cládis Steuernagel, põe em prática a função educacional pretendida para o instrumento desde o ano da reinauguração.

A historiadora Valdete Daufemback Niehues acredita que, ao mesmo tempo em que o instrumento é limitado a um determinado grupo pela sua localização, ele tem sido utilizado de forma ativa pela comunidade luterana. Ainda assim, ela considera que este papel não pertence à igreja e sim ao setor público, que deveria promover mais ações culturais na cidade. “O joinvilense não tem muita habilidade de cultivar este tipo de cultura, é preciso ter um aprendizado, uma sensibilidade que precisa ser desenvolvida”, afirma.

Responsável ou não, Cládis afirma que a Igreja da Paz vem se empenhando para tornar o instrumento acessível à população de Joinville. E o esforço tem dado retornos, já que até hoje todos os concertos lotaram o templo, feito visto com orgulho por toda a comunidade.

Doce e grandioso

Com uma imagem imponente, o órgão de tubos atrai olhares mesmo estando parcialmente escondido no mezanino da igreja. Durante os cultos, não é raro notar um ou outro curioso girar discretamente a cabeça para observar um pouco melhor o autor de sons tão doces e singulares. Quem não conhece quer ter a oportunidade de reparar em qualquer detalhe que lhe pareça interessante; aqueles que já conhecem querem ter a chance de encontrar um novo detalhe que passou despercebido.

Construído pela Oficina de Organaria alemã Friedrich Weigle, o órgão da Igreja da Paz possui dois manuais, dezenove registros e 579 tubos. “É dividido em três partes importantes: a primeira são os tubos, onde o som é gerado”, relata a organista Lucy Mary da Costa Leão, apontando para os mais de 500 tubos dispostos um ao lado do outro, de tamanhos e grossuras diferentes, parte de madeira, parte de metal. “A segunda é a consola, ou console, onde estão os manuais, registros e, no nosso caso, a pedaleira”, continua, mostrando a estrutura em frente aos tubos, parecida com um piano vertical, que possui dois teclados para mão, um grande teclado de madeira para os pés (responsável pelas notas mais graves) e uma série de botões que lembram interruptores de energia. Por fim, a musicista caminha alguns passos e mostra uma caixa, de tamanho mediano, que é uma espécie de “coração” do órgão: “A outra parte é responsável pela geração do ar que faz com que os tubos vibrem, que é o fole”, finaliza.

Sentando-se na consola, Lucy Mary utiliza uma pequena chave para ligar um motor no interior da estrutura de maneira que comporta os tubos. “Agora o fole está cheio de ar”, descreve. Ao apertar um dos botões expostos no painel, chamado de registro, uma fileira inteira de tubos é acionada. “Então parte daquele ar vai para a chamada secreta, que é outra caixa, localizada embaixo da fileira de tubos”. E então, a organista afunda levemente os dedos sobre a tecla, uma série de válvulas localizadas na extremidade dos tubos se abre, o ar atravessa rapidamente a extensão e, em alguns segundos, ali está o som, pairando entre cada pedaço de concreto da construção. “Veja, está soando”, sussurra Lucy Mary, e então inicia uma sequência de acordes aleatórios que até aos ouvidos mais preparados soam como música.

Cada um dos 579 tubos representa uma nota diferente. As notas mais graves fazem o corpo vibrar, dando a sensação de “balançar” o coração. As mais agudas são feitas por tubos com apenas alguns centímetros de diâmetro. Quanto mais agudo, menor e mais fino o tubo, quanto mais grave, maior e mais espesso. Acionando os manuais e registros, Lucy Mary vai criando uma série de combinações com os sons, enquanto dezenas de tubos ressoam ao mesmo tempo. Aí entram os graves, baixos, pesados. De repente, Lucy Mary está tocando não apenas com as mãos, mas com o pés, lendo três linhas diferentes de uma mesma música – seria como alguém ler três linhas de um livro ao mesmo tempo. “Tem uma orquestra inteira aqui”, comenta sorrindo.

Mas o que mais chama a atenção neste monumental instrumento é a organola, um discreto sistema que possibilita ao órgão independência total - dispensando, inclusive, o músico. O curioso item possui uma barra repleta de furos, que libera ar quando um motor é acionado. Em volta desta barra é encaixado um rolo de papel perfurado, em que cada furo representa uma nota musical. Quando o ar passa pelo furo, o som reverbera. E lá está o órgão, tocando sozinho. “É como caixinha de música”, brinca Lucy Mary, “eu já disse que isso aqui é covardia”, declara, encantada com a engenhosidade do sistema.

Engenhosidade milenar

Diante do órgão da Igreja da Paz, a organista Lucy Mary da Costa Leão sorri ao lembrar-se da história sobre o surgimento do instrumento. Posicionada em frente à grande caixa que comporta os tubos, a organista ainda parece se impressionar com a genialidade da peça.

“O órgão nasceu de um conjunto de flautas amarradas entre si, cada uma com sua altura de som, que corresponde a uma nota. Certo dia, um curioso resolveu construir uma caixa oca, colocou essa fileira de tubos em cima da caixa e fez uma pressão embaixo, para que cada tubo pudesse soar individualmente”, explica, apontando para os tubos de aço e madeira enfileirados nos fundos da igreja.

Apesar de parecer um instrumento moderno pela sua complexidade, Lucy Mary conta que o órgão de tubos teve origem por volta de 300 anos antes de Cristo. “Para você ter idéia de como é antigo”, salienta a musicista, acostumada com as expressões de surpresa que a informação costuma gerar. E não foi dentro das igrejas que o órgão nasceu: ao contrário, sua função era anunciar a entrada e a saída dos exércitos na guerra. “Ele era hidráulico e bombava o ar com a pressão da água. Não tinha teclados, eram varinhas onde se batia com o punho, era uma coisa muito rústica. Como na época não existia essa poluição sonora, o som ia a quilômetros de distância”.

Durante séculos o instrumento passou por modificações de tamanho, modelo e sonoridade, até chegar ao formato final, no século XVI. Sua introdução nas igrejas veio como um símbolo de imponência. “Quando começaram a construir as grandes catedrais, pensaram sobre que tipo de instrumento se colocaria dentro delas”, conta Lucy Mary, gesticulando para as paredes e o teto alto do templo da Igreja da Paz. “Na época as pessoas pensavam ‘a minha igreja tem o órgão mais bonito’. Havia essa competitividade”.

O fato de o Brasil ter sido colonizado pelo país, na época, mais católico do mundo, fez com que novas entidades religiosas, como a luterana, procurassem meios diferenciados de atrair fiéis. Segundo a historiadora Valdete Daufemback Niehues, esse poder transmitido pelo instrumento estava muito presente em Joinville quando a Igreja da Paz adquiriu seu órgão de tubos.

“Durante todo o Brasil império a única igreja que podia ter torres era a igreja católica. Então os luteranos tinham uma igreja baixa que não podia despontar, não podia aparecer. Imagina o que isso significou para uma população luterana, que tinha condição e um desejo de cativar os seus fiéis, mas que não conseguia ostentar isso. E no momento que foi para comprar um órgão, evidentemente que ela queria comprar alguma coisa que a distinguisse, e como a comunidade aqui estava se fortalecendo, claro que ela queria ter um objeto que chamasse a atenção, que agregasse”, relata a historiadora.

A batalha vencida

No ano 2000, pela primeira vez em 89 anos, o órgão parou de soar. Assolado por uma infestação de cupim, precisou cessar sua música e permanecer em completo silêncio. Seis anos mais tarde, uma iniciativa traria novamente a esperança daqueles que consideram o órgão parte crucial da Igreja da Paz. Cládis Steuernagel, na época coordenadora do departamento de música da paróquia, encabeçou o projeto que tentaria conseguir uma captação de verbas para restauração do instrumento. Em parceria com um grupo de pessoas da comunidade e da coordenação da paróquia, Cládis iniciou a procura por uma equipe de profissionais aptos para assumir a missão. “Foi um trabalho de muito tempo, e também de muita conversação”, relembra Cládis.

A empresa Rigatto & Filhos, de São Paulo, foi escolhida para realizar o trabalho, que levou cerca de um ano e meio. Daniel Gazzaniga Rigatto, um dos artesãos da equipe, lembra bem dos inúmeros problemas apresentados pelo instrumento: “havia muitos tubos de liga de estanho e chumbo danificados, partes da transmissão pneumática que foram retiradas, muitas partes afetadas pelos cupins (foles, tubos, estrutura). A parte mais difícil foi reconstruir partes modificadas e danificadas por mão de obra não especializada”.

No total, a restauração custou R$ 175 mil, conseguidos através da Lei de Mecenato Municipal. “Tivemos alguns problemas, algumas questões um pouco polêmicas em relação a isso, mas num grande contexto você sempre tem as pessoas que caminham junto e olham com bons olhos”, conta Cládis. Apesar das dificuldades, hoje, como atual presidente da paróquia, Cládis fica repleta de orgulho quando recorda o concerto de reinauguração do órgão, realizado no dia primeiro de junho de 2008. Para ela, um momento único, marcado pelo sentimento de vitória. “Foi como um: ufa, conseguimos”, diz ela, tentando descrever a sensação compartilhada pela paróquia.

Então, após meses de ensaio e divulgação, ouviu-se novamente o doce som do órgão de tubos. Sentada entre os espectadores, Cládis viu, pouco a pouco, a igreja lotar. Tantas pessoas queriam ver e ouvir o antigo instrumento, que faltou lugar dentro do templo. Parte dos espectadores precisou assistir à apresentação em um data show, instalado no salão da paróquia. Aproximadamente mil pessoas, entre fiéis da Igreja da Paz, cidadãos de Joinville, autoridades eclesiásticas, autoridades políticas e visitantes de outras cidades compareceram ao concerto. Para Lucy Mary, solista da apresentação, uma noite de reencontro com um velho amigo.

“O concerto foi o ápice de tudo. Fiquei muito grata, inclusive manifestei minha gratidão a Deus, por tudo poder estar acontecendo. Foi muito gratificante esse final feliz”, conta Cládis, com uma expressão de alegria.


* Estudante de Jornalismo no Bom Jesus/Ielusc. Texto produzido para a disciplina de Redação 5, ministrada pela professora Lara Lima.

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