Trinta segundos e o sinal se fecha. Para os que sobrevivem da arte de rua, significa o início do espetáculo. A cortina se abre. Dela podem sair estátuas-vivas, malabaristas e pirofagistas, que utilizam os metros de asfalto como o único palco disponível. Tais personagens já fazem parte do dia a dia de quem passa pelas ruas centrais de Joinville. Mas manifestações artísticas desse gênero são vetadas por lei na cidade do festival de dança. O gerente de permissões e concessões da Conurb, Humberto Mafra, explica que usar os sinais para tais atividades pode atrapalhar a atenção dos motoristas e tumultuar o trânsito. Por isso, a proibição. Mafra cita as leis 175/2004 e 84/2000 e afirma que, quando o órgão encontra alguém fazendo apresentações nos semáforos, orienta para que deixe o local. Do contrário, multa.
Como a maioria dessas pessoas não têm outra fonte de renda, a Secretaria de Assistência Social criou um projeto que promete oportunidades para resgatar a cidadania de quem vive nas ruas. Batizado de Porto Seguro, o projeto coordenado por Márcio Sell atende 191 pessoas, promovendo ações como encaminhamentos para tratamento de dependência química, inclusão em programas de alfabetização, inserção no mercado de trabalho, albergue e, em alguns casos, fornecimento de cestas básicas. As atividades são realizadas na sede da secretaria, no bairro Bucarein. Marcio afirma que a maioria dos artistas de rua não mora em Joinville. “Eles ouvem as orientações, mas não se submetem ao nosso acompanhamento.” O último caso dessa natureza atendido pelo projeto foi em 2007, e, desde então, a pessoa não foi mais vista nas ruas.
Uma graça em troca de um sorriso
O palhaço aparece para fazer seu número com malabares. Nos míseros segundos de apresentação, carros buzinam, motoristas fingem falar ao telefone, vidros da janela se fecham repentinamente, e poucos ajudam o homem vestido com meias coloridas, chapéu de bobo da corte e nariz vermelho. O personagem que traz cor ao semáforo da rua Padre Carlos, no Centro, é o gaúcho Luciano Himmer, 33 anos, dez dedicados à arte. Quando se desfaz de seus trajes, a feição muda de alegre para cansada, e ele explica que havia muito tempo não parava nos sinais. “Só voltei porque preciso pagar o aluguel.” Quando menino, a diversão era assistir aos episódios do seriado “Os Trapalhões” e dar risada com as aventuras de Dedé, Didi, Mussum e Zacarias, seus ídolos de infância e a quem atribui sua admiração pelo circo.
Luciano encontrou nos espetáculos circenses uma forma de unir talento e trabalho, ganhando dinheiro com aquilo que gosta. “Cresci com a arte, faço teatro de escola desde os 8 anos, e sempre estive envolvido nesse meio”, diz. O olhar firme e os argumentos concretos indicam que ele fala como profissional. Aliás, ninguém pode dizer que o trabalho realizado pelo Grupo Lúdico Teatral, fundado por Luciano, não é sério. Acompanhado pela esposa e por uma amiga, o artista atende empresas, eventos e aniversários de crianças, ganhando muito mais, aí, do que nos sinais. Fundado em 2009, o grupo pesquisa e desenvolve técnicas circenses, aliadas à música e ao teatro. Além do malabarismo, eles realizam apresentações com pirofagia, monociclo e perna-de-pau, incluindo pinturas no rosto e esculturas em balão, quando o evento pede. “Já temos uma sede própria, onde vendo objetos e pretendo dar aulas de circo”, diz, entusiasmado. Recentemente, o grupo foi visto pelo público no desfile de 159 anos de Joinville, representando a Rádio Mais FM, no Dia das Crianças do Supermercado Angeloni, e no aniversário da Galeria 9 de Março, em Joinville.
Por meio de sua arte, Luciano já circulou por outros estados, como São Paulo, Rio de Janeiro, Paraná, e pelo menos uma vez fora do Brasil, no Uruguai. Porém, diz que o único lugar em que teve problema ao expor seu trabalho foi Santa Catarina. “Houve uma vez em que tomaram minhas claves e me humilharam. Não precisavam ter agido assim, achei desumano, uma falta de respeito.” Luciano é contra a proibição aos artistas de rua nos semáforos e salienta que o que faz deve ser visto como um trabalho. “Não sou pedinte. Tem gente que não faz nada e pede. Eu faço minha arte e não obrigo ninguém a dar dinheiro. Se ganhar ao menos um sorriso, já me sinto melhor”, diz.
Formada em artes cênicas com habilitação em interpretação teatral pela faculdade de Artes do Paraná (FAP) e mestranda em teatro pela Udesc de Florianópolis, Daiane Dordete também discorda da legislação municipal. Daiane reconhece o caráter artístico das apresentações realizadas nas vias públicas por pessoas que não são profissionais. Diz que não há como generalizar a qualificação de “artistas de rua”, que abrangeria desde um violeiro cego que encontrou uma forma menos burocrática de se sustentar até os malabaristas e estátuas-vivas. Ela compara essa expressão artística com alguns formatos americanos. “Como os stand-up comedies, que viraram febre nos bares e teatros. Ou será que um modelo americano é considerado mais artístico que o malabar ou a estátua-viva?”
Daiane observa ainda que não há uma cultura voltada ao consumo de “arte local”, apenas aquela mostrada pela televisão, global, nacional e importada. “Toda manifestação artística tem demanda de público e clientes. Há público para todos, profissionais e amadores, acadêmicos e populares.” Ela comenta que falta divulgação e difusão desse tipo de produção – os profissionais recebem algum incentivo via projetos de lei, mas ainda é pouco e para poucos. “Talvez o mais rápido seja ir para a rua mesmo. Ou ser artista só por diversão, no tempo livre”, completa.
A Fundação Cultural de Joinville (FCJ) reconhece que os semáforos abrigam muitos artistas populares e lembra até de alguns casos recentes de performances levadas às ruas por artistas profissionais mais conhecidos, como Carlos Franzói. Porém, questiona a falta de segurança adequada para esse tipo de intervenção de forma sistemática. “Entendemos que é preciso pensar na questão da segurança, e também na livre expressão. O assunto não se esgota em uma frase ou em uma regulamentação”, ressalta a FCJ, por meio de sua assessoria de imprensa. Uma saída para os artistas que se interessem em profissionalizar seu trabalho, segundo a fundação, é fazer a inscrição de um projeto no Sistema Municipal de Desenvolvimento pela Cultura (Simdec), que contempla projetos voltados à cultura popular. A assessoria diz que, no lançamento da edição 2010, representantes da arte circense buscaram informações sobre como proceder, e agora a questão depende da iniciativa dos grupos/artistas, assim como de projetos bem fundamentados.
Um guerreiro prateado
Seu nome é Jonny, e das 9 da manhã à 1 e meia da tarde ele é feito de prata. Não tem um cavalo, nem uma armadura medieval, mas enfrenta monstros muito piores que os da Idade Média. Pintado dos pés à cabeça com tinta da cor do minério, o homem finge ser feito de parafusos, de fios eletrificados, e simula precisar ser abastecido por fluidos e óleos. Jonny de Oliveira, 33 anos, é estátua-viva e faz da rua seu palco. Natural de São Francisco do Sul, mora em Joinville há 17 anos e trabalha há 12 com arte nas ruas. Atua de segunda a sábado na Rua Mário Lobo, no Centro, e está preparado para encarnar mais de 70 personagens, como Hades, Poseidon e o Cristo Redentor. “A maioria é da mitologia grega”, diz, orgulhoso.
Jonny não tem outra fonte de renda, além das ruas. Conta que o desespero o levou a procurar essa forma de ganhar dinheiro. Seu filho havia acabado de nascer, o rapaz estava desempregado e precisava sustentar a criança de alguma forma. Iniciou seu contato com a arte por intermédio de um amigo. “Ele perguntou se eu queria trabalhar, eu disse que sim, nem perguntei o que era para fazer.” Nunca lidou com teatro, aprendeu tudo o que sabe a partir da influência de seu amigo, natural de Minas Gerais. Apesar da família de Jonny aceitar sua profissão, ele diz que não deseja que o filho siga a mesma carreira, em função do preconceito que sofre. “Sou vítima do preconceito todos os dias, é uma coisa que vem de berço no brasileiro. O povo já é educado com o preconceito, mas eu finjo que não existe.” Ele se revolta quando relata que, a cada 10 pessoas que passam por ele nos semáforos, cinco criticam, duas ajudam e três são indiferentes.
O artista lamenta que as autoridades não vejam sua atividade como arte. “Dizem que é constrangedor um cidadão estender um chapéu para um carro num semáforo. Para mim, constrangedor é ver o próprio filho pedir comida e você não poder dar.” Ele afirma que alguns políticos já lhe prometeram cursos, ajuda financeira e emprego com carteira assinada, mas nada fizeram. “Fui enganado, cortaram minha luz e me despejaram de casa. Depois vieram com cestas básicas.”
Jonny diz que pensa em abandonar o trabalho nas ruas neste ano. “Não sou mais um garoto.” Ele afirma que, há 12 anos, a população demonstrava mais interesse, tinha mais curiosidade. “Quanto menor a cidade, maior o espanto”.
* A matéria foi desenvolvida para a disciplina de Redação 3, sob orientação do professor Guilherme Diefenthaeler .