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Matéria 9532, publicada em 15/04/2010.


480 mil brasileiras e brasileiros encarcerados e as imposturas modernas



A partir do livro A crítica da razão indolente – contra o desperdício da experiência de Boaventura Souza Santos, a psicóloga Valdirene Daufemback* questiona quatro pressupostos da modernidade em função dos problemas de criminalidade e do sistema carcerário brasileiro. O artigo precede as discussões do 4º Seminário de Gestão Prisional, Segurança Pública e Cidadania, que acontecerá em maio, em Joinville.

Algumas coisas estão tão incorporadas ao nosso cotidiano que nos parecem naturais, ou seja, algo imanente à nossa sociedade. A concentração das pessoas nas cidades, a poluição, a violência, a existência de classes sociais, a concentração da renda, o estresse ou a desesperança de uma mudança significativa na qualidade de vida de todos são certezas. Não concebemos nem pensar diferente; cansa, não faz parte dos nossos arranjos mentais. O que nos acontece? Boas e más notícias. Primeiro as boas: vivemos num momento histórico de esgotamento de um modelo de vida, de um paradigma que se consolidou nos últimos 200 anos e dá sinais de colapso, abrindo espaço para questionamentos que nos levarão a alternativas na forma de conhecer e agir no mundo. As más notícias: o novo paradigma será construído por meio de mudanças radicais na ciência, no direito e no senso comum. Isso implicará em transformações viscerais. Vamos fazer um exercício intelectual sobre a abrangência dessas mudanças?

Política, ciência, direito e realidade

Alguns dos pilares do pensamento moderno são a redução do poder político ao estado, a adequação das possibilidades de realidade ao que existe, a convicção de que a verdade é produzida pela ciência e a ideia de que as determinações do direito são resultado de descobertas científicas obtidas de forma isenta e por meio de métodos críveis. São afirmações óbvias, não é? Não! Parecem óbvias pela familiaridade, mas são construções baseadas em pressupostos que, se melhor examinados, apresentam incongruências e produzem imposturas graves.

Primeiro aspecto: aos poucos, a sociedade legitimou como a única forma de exercer o poder político a atuação estatal, porém permitiu que os grupos sociais dominantes continuassem exercendo o poder de outrora e que a manifestação contrária fosse recriminada severamente. Essa ideia, além de empobrecer o debate multicultural possível no interior do estado, marginaliza aqueles que possuem interesses sociais diferentes e se organizam para conquistá-los (exemplo disso é a forma como são vistos e tratados os trabalhadores rurais sem terra, os indígenas, os moradores de favelas, os presos, entre outros).

A segunda ideia tem a ver com a convicção de que a verdade é produzida pela ciência. A ciência, esse ente respeitável e sério, está calcada em ideários problemáticos que restringem expressivamente o seu entendimento sobre o mundo. Explicando melhor: a racionalidade científica foi desenvolvida no domínio das ciências naturais estendendo-se, paulatinamente, às ciências sociais. Isso é observável pelo uso de métodos matemáticos de verificação, divisão dos fenômenos e análise das partes, visando a estabelecer relações de conhecimento a partir da redução da complexidade. E para arrebatar: a convicção de que a natureza e o ser humano são distintos e que a natureza é algo linear e simples. Por muito tempo, essas ideias reinaram. Porém, Einstein, com a mecânica quântica, começou a miná-las quando identificou arbitrariedade do cientista na escolha do sistema de medição de acontecimentos simultâneos. Isso revolucionou a concepção de tempo e espaço. Depois, Heisenberg e Böhr demonstraram que não é possível observar ou medir um objeto sem interferir nele – assim foi por terra a convicção de neutralidade entre o sujeito e objeto da pesquisa científica, onde o sujeito pesquisador não é interferido nem interfere no objeto pesquisado. Esses conceitos, entre outros impossíveis de demonstrar neste texto, relativizam a capacidade da ciência de produzir verdade e de ser a única forma de conhecimento válido para a sociedade, bem como da sociedade vê-la como algo insípido, inodoro e incolor. Avaliando-a melhor, é possível observar sua origem ocidental, capitalista, racista e sexista.

O direito não está imune a essa trajetória histórica e procurou dar respostas por meio de legislação e mecanismos de controle para viabilizar a gestão científica em curso da sociedade, cuja promessa era de uma revolução científica e tecnológica que resultaria em ordem e progresso. O direito fez uso da despolitização jurídica do conflito social, como se as leis e métodos coercitivos fossem algo natural e justo na essência, não existindo contexto. Ciência e direito cooperam e produzem uma larga retórica sobre si mesmo que causam dois efeitos: por um lado admiração e sujeição (são tantos métodos, categorias, teorias, experimentos: há de ser um conhecimento consistente) e, por outro lado, incompreensão e sujeição (são tantos conceitos e palavras instituídas não acessíveis à compreensão da população: como questionar sua validade?)[3].

E o último dos pilares da modernidade aqui apresentados: a adequação das possibilidades de realidade ao que existe. Essa frase é mais complexa do que parece, pois no cerne dessa afirmação está a sensação contemporânea de insatisfação, infelicidade, falta de sentido, superficialidade, insegurança, enfim, a percepção de que o mundo não vai bem. Porém, acredita-se que não há outro jeito, que as coisas são assim mesmo. Por que é tão difícil estabelecer uma teoria crítica à vida moderna (entendendo como crítica toda a teoria que não reduz a “realidade” ao que existe)? Boaventura Santos, sociólogo português, indica algumas das possíveis causas: espera-se que haja uma alternativa total à sociedade que existe, como se uma única proposta fosse dar conta da complexidade moderna; a industrialização não é necessariamente o motor do progresso nem a parteira do desenvolvimento: além de degradar o planeta, ignorou solenemente dois terços da população mundial; não há mais demarcação de alternativas políticas distintas, as contradições convivem com naturalidade na mesma proposta. Como exemplo, cita-se a oposição capitalismo/socialismo, que foi sendo substituída pelo ícone da sociedade industrial, pós-industrial, e, finalmente, da informação. Essas questões dificultam a construção de ideias mais claras sobre o que combater, o que construir, de quem são as responsabilidades e quais perspectivas existem, explicando, em grande parte, nosso desânimo por mudanças.

Criminalidade

Oferecidos esses pontos sobre a modernidade, gostaria de fazer uma breve análise da criminalidade: parece que esse é um fenômeno transversal que carrega em si todos os elementos de contrariedade e falência do paradigma moderno. A prisão, como pena, foi inventada no século 18, acompanhando o movimento de fortalecimento do estado laico como forma de regulação social. Inicialmente as teorias científicas de natureza higienista (que procuravam limpar a sociedade dos indesejáveis desempregados, loucos, criminosos, prostitutas e outros) produziram um conjunto de explicações e métodos para justificar a existência das instituições totais – como são classificadas as prisões e os manicômios. Essas explicações baseavam-se em pressupostos biológicos que determinavam características pessoais, cujos portadores deveriam ser afastados do convívio com a sociedade, sem considerar a relação de interferência dessa mesma sociedade no comportamento desse indivíduo. Assim, o direito registrou e regulamentou a necessidade de proteção social a partir dos conceitos científicos de “periculosidade”, “prognóstico de reincidência”, comportamentos associados ao “homem médio”, “personalidade” e tantos outros, criando um sistema penal (legislativo, policial e judiciário) completo.

Dessa forma, chegamos a 2010 com a marca de 480 mil pessoas em privação de liberdade no Brasil, em condições de existência vergonhosas, cuja dinâmica favorece a produção de mais criminalidade e é parte fundamental do tráfico de drogas e da criminalidade organizada, além de viabilizar a etiquetagem social que estigmatiza e marginaliza uma parcela da população. É preciso se perguntar: necessita ser realmente assim? A realidade se reduz a isso? Quais outras propostas são possíveis? Essas e outras questões serão discutidas, em especial, na mesa de discussão “No caminho do desencarceramento: propostas e experiências”, no 4º Seminário de Gestão Prisional, Segurança Pública e Cidadania que acontece, em maio, em Joinville.

Considerando o que já foi dito sobre as causas que dificultam o desenvolvimento de uma teoria crítica, é possível alegar: não há um conhecimento totalizante, portanto não haverá uma única proposta para superar as prisões; o atual modelo de desenvolvimento não é compatível com a inclusão desse meio milhão de brasileiros estigmatizados e marginalizados que se encontram presos e as soluções não estão encobertas nas alternativas sofisticadas e contraditórias da modernidade (como o monitoramento eletrônico, as terceirizações ou as “supermax” – Super Maximum Securityimas). Porém, se o grande, indecente e ineficaz encarceramento do século 20 ainda não tem solução, não quer dizer que ela não exista, é possível que nós e nossos pensamentos modernos ainda não a tenhamos construído. Outra ciência, outra política, outra sociedade são possíveis.

[3]Por sarcasmo, registro “sujeição” duas vezes, pelo caráter de inevitabilidade imposto à população por parte das duas entidades: a ciência e o direito.


*Mestre em Psicologia (UFSC), doutoranda em Direito (UnB), diretora do Centro de Direitos Humanos de Joinville e integrante do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (Ministério da Justiça)

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