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Matéria 6712, publicada em 14/08/2008.


Contornos do tempo

Jacques Mick*


Não importa que o leitor esteja sentado ao sol, num banco embaixo da árvore, ou à sombra, num café no shopping – o texto o conduz a uma fenda no tempo-espaço. A experiência é conhecida por quem lê: quando nele descobrimos algo que nos dá prazer, o texto desloca nossa imaginação para um não-lugar, fora do alcance dos cronômetros. O gozo se estende longamente até que, felizes e insaciáveis, lamentamos ter chegado à página final e voltamos nossa atenção à cafeína ou às formigas. Em “Tempo”, ensaio defendido nesta semana, Paulo Guilherme Horn urde a prosa de densa teoria com habilidade de contista; não trata do tempo do leitor, nem do tempo do autor, temas a que me leva a inspiração provocada pela viagem da leitura.

Minha experiência do tempo na leitura dialoga com as classificações criativas de Paulo. Ora simples, foge para a frente ou para trás; recomeça de um ponto no meio ou no final de uma lembrança; alonga-se para muito além dos minutos do relógio. Ora complexa, divide-me em dois – leitor-autor, interpreto o ensaio e construo este texto, antes até de desejá-lo; leitor-professor, reconheço entre as linhas o novelo de antigos diálogos sobre a narrativa, o tempo social, o tempo próprio. Norbert Elias (1897-1990) leu Henri-Louis Bergson (1859-1941); as percepções do sociólogo alemão sobre o tempo foram amplamente baseadas em “Matéria e Memória” (1896), do filósofo francês, livro central para a construção de “Tempo” por Paulo. Em meu vão espaço-temporal, reencontro fichas de leitura e evoco imagens de índios, velhos, baianos.

(Paulo é um esteta que ainda descuida da matéria-prima: aqui e ali, a leitura é perturbada por uma crase em excesso (ou ausente), por uma concordância descuidada, por uma palavra que falta ou outra que sobra. Nada grave, mas incomoda – como marteladas no silêncio, como um parágrafo formado entre parênteses.)

A livre articulação entre livros e filmes proposta por Paulo é um convite à experiência da linearidade alternada: como muitos personagens em um só (“sou 300, sou 350”), revejo “As horas”, “Cidadão Kane”, “Pulp Fiction”, “Volver”; releio Joyce, Proust, Borges, Machado. Muitos tempos em um mesmo tempo. Paulo demonstra autonomia crítica ao organizar em onze variações (seis simples, cinco complexas) as estratégias narrativas que encontrou, na biblioteca e no cinema, para enquadrar e desenquadrar o tempo, e analisá-las a partir de Bergson e Gilles Deleuze (1925-1995). É o que se espera de um trabalho de conclusão de curso feito com esmero – e eis que o tempo do autor se esgueira para a próxima frase.

É impressionante o que a formação superior provocou nas idéias de tantos alunos que nos últimos dias apresentaram o resultado de suas pesquisas a professores e colegas, aqui no Ielusc. Como em semestres anteriores, alguns dos melhores textos dirigiram-se explicitamente para a filosofia – não foram flertes, mas envolvimentos apaixonados, intensos, daqueles para a vida toda. Nietzsche e Bataille, Bergson e Deleuze acompanharam Agamben, Sloterdijk, Heidegger, Wittgenstein e outros sobrenomes cheios de consoantes no discurso de nossos alunos. O que terá acontecido com eles?

O que Paulo fez, tomando como objetos a literatura e o cinema, poderia ser tentado com o jornalismo ou a publicidade – outro estudo, outros resultados. Mas não poderia ser feito sem a filosofia. Alunos como ele descobriram aqui que é preciso perseguir, em qualquer lugar onde o conhecimento se esconda, explicações para problemas não respondidos a contento pelas teorias da comunicação – centro de sua formação. Será mais um sinal de que o conceito de “comunicação” é inadequado como eixo para interpretar o mundo? Não sei. É, em todo caso, sinal de que o projeto pedagógico deste curso, aberto à radicalidade do pensamento, se realizou muito intensamente nesses casos. Cada um a seu tempo, enquanto passaram por aqui, tais alunos compreenderam que só a teoria salva.

Nessa busca, Paulo encontrou a si próprio. Da inquietação inicial, provocada pelas possíveis formas de mobilização narrativa do tempo em um conto que escrevia, teceu a pesquisa. E dela voltou ao conto, que se anexa vertiginoso, inquieto. O tempo passou veloz para o jovem autor.


Jacques Mick é professor do Ielusc

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