Setenta pessoas assistindo um suicídio. A falta de preposição é proposital. Afinal, a platéia colaborou com a defesa de Lílian Albertina Cardoso (Jornal) quando ela pediu silêncio para iniciar a sua defesa, e falar de morte. Não, leitor, você não teve um déjà vu. Era mais uma monografia sobre morte. Outro ensaio, outra aprovação. “Na própria pele” de Lílian nasceu a fictícia Clarissa, uma psicóloga, que pelas experiências e estudos de sua criadora, aproximou-se do suicídio, como tema e como ato. E Lílian, para fazer sua Clarissa, só não se matou mesmo. No mais, leu de Durkheim a Freud, ficou íntima de psicólogos, ouviu casos fúnebres, leu bilhetes póstumos, assumiu a convivência do Instituto Médico Legal, e só parou quando se deparou com um cadáver de alguém que não quis mais viver, com a corda no pescoço. Desistiu. Desistiu? Suicidar-se é covardia ou coragem? “Para os escravos era redenção”, rebate Lilian. Para Clarissa, ao que parece, mais que coragem ou covardia, mais que redenção ou desistência, o suicídio é fascínio. E acima de tudo, um ato personalíssimo, de quando o homem vira juiz de si mesmo. Talvez por isso “suicidar(-se)” é um verbo reflexivo.
Na terça-feira, pelos corredores, o orientador Jacques Mick adiantava apenas que a monografia era “um romance”. À boca pequena, o trabalho havia sido apelidado de “Morri 2”, em referência à monografia de Betina Weber, defendida há um ano, que também tratava de morte. Para aguçar ainda mais a curiosidade, o orientador definiu o que seria ainda assistido como “intrigante”. De início, foram 16 minutos preenchidos por um texto lido pela própria autora, explicando os motivos da escolha do tema suicídio, falando de suas referências, que vieram de Saramago e foram até “Édipo Rei”. Comentou também a influência de suas fontes, ou seus “analistas”, companheiros de troca de idéias, pelo messenger e pelo telefone. Arrematou seus comentários (quem sabe um réquiem?) relatando a experiência de ver o corpo de um suicida "ao vivo" como sendo o momento em que sentiu na pele sobre o que estava falando.
O publicitário Pedro Ramirez, às 21h23, abriu sua fala comentando sobre a curiosidade que o tema suicídio desperta e, talvez por isso, a dificuldade de lidar com algo tão delicado como a morte. Se disse surpreso com a sua escolha para a banca, e adiantou que talvez sua visão sobre a face jornalística do ensaio fosse contestável, já que essa não é a sua especialidade. Ao fim, levou a argüição em ritmo leve, leve o suficiente para que houvesse troca de sorrisos entre banca e avaliada. Clima oposto ao trabalho, para Pedro, “angustiante”. Dezenove minutos do coordenador de Publicidade e Propaganda, e iniciou-se a leitura de outra carta, agora lavrada pelo doutor em Letras Luiz Felipe Soares, o outro professor da banca. Contundente, Felipe disse que Lílian cedeu à insistente tagarelice psicanalítica e acabou seduzida por conceitos de senso comum. Mas também chamou “Na própria pele” de “convite à obsessão”, reconhecendo o caráter literário do ensaio como de boa qualidade. Felipe lembrou da vida como cativeiro, flertou com a poesia na musicalidade de sua carta, leu um trecho de Artaud em “Van Gogh e o suicídio da sociedade”, e entrelaçou morte e voz citando Agamben: “Morte e voz têm a mesma estrutura metafísica, e são inseparáveis”. Mas mesmo assim, não conseguiu, em uma palavra, definir o texto de Lílian. “Só posso dizer que é ficção, mas isso é quase óbvio”.
Para fugir de vez do protocolo, Jacques Mick soltou sua verve literária e leu um texto em que fez crescer um personagem criado por Lílian no ensaio para ligar seu estudo ao jornalismo, já que Clarissa foi concebida psicóloga. Era Pedro. E de Pedro a defesa rumou para a platéia, com perguntas que expressaram a curiosidade sobre o tema. Lílian respondeu a todas. E revelou, de antemão, aos que não leram seu ensaio: “Clarissa não morreu. Aliás, acho que ela ainda tem muita vida, porque tem sua função na sociedade”. Para Lílian, o que foi seu trabalho? “Satisfação”, conclui sorridente. Justificada, já que após 13 minutos de discussão entre banca e orientador, o ensaio suicida da futura jornalista ganhou nota 9,5. E a conclusão é que o mundo dos vivos nunca saberá o que sente quem decide deixá-lo por conta própria.