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Matéria 4692, publicada em 16/08/2007.


Pedro e Clarissa*

Jacques Mick


Pedro havia decidido terminar de ler os originais do livro de Clarissa quando se encontrasse com ela, e logo depois da última frase entendeu que essa havia sido uma péssima decisão. A sensação de desconforto que acompanhara a leitura convertera-se num desgosto profundo. Pedro detestara.

A começar pelo tom ambíguo, misto de livro de auto-ajuda e diário de campo. A prosa lhe parecera uma narrativa pequeno-burguesa, incapaz de compreender radicalmente a vida ou a morte. A assepsia do texto era um espelho da vida de Clarissa: limpinha, organizadinha, cercada de rituais anódinos, tensões pálidas, falsos desafios; uma vida exuberante como Coca Light morna. Clarissa fora incapaz de romper com qualquer coisa – sequer com o discurso enfadonho da ciência, tratado com respeito e deferência.

Respeito e deferência – a cara de Clarissa.

Pedro é um cara fodido, mas não é burro. Acha que entendeu o que Deleuze queria dizer sobre a personalidade do autor: que o sujeito só escreve com autonomia depois que se despersonaliza, depois de ter lido isto e aquilo, e aquilo sobre isto, e isto sobre aquilo. E então, tem de foder com tudo o que leu, enrabando os autores e, por esse método, gerando neles filhos monstruosos. (Na verdade, nem é preciso ser tão inteligente para entender isso). Clarissa já se havia despersonalizado tanto (e não só nesse sentido intelectual, obviamente), que Pedro esperava xingamentos, gritos, gemidos. Mas a esperança tem a ver, claro, com o jeito de Pedro ver o mundo e, nele, ver Clarissa.

Aliás, Pedro detestara o modo como Clarissa retratara a si própria. Não podia acreditar que toda a ambição daquela mulher estivesse em perseguir um sentido para a decisão de quem se mata. Lembrava Pessoa: “Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo”. Mas esse era ele, Pedro Álvaro de Campos. Clarissa não. Ela se desenhava cercada por tensão, mas era incapaz de entender o sofrimento. Ela não conhecia a dor. Ela jamais sentira profundamente a perda. No tédio burguês, o mundo se esvai, domesticado. Clarissa não precisava morrer – ela já estava enterrada naquele casamento.

Pedro também detestara a idéia de Clarissa sobre ele próprio. Ele era o sujeito mais fodido do mundo. “E mais mal-pago do mundo”, acrescentava. Trabalhava num jornal sem leitores. Dois domingos atrás, inventara uma notícia da primeira à última linha, na esperança de ser demitido. Ninguém percebeu. Era um jovem viajado. Passara fome, comera caviar. Já havia contado histórias de corruptos e homicidas, de heróis e fraudadores, de Mecenas e avaros. Tropeçara em cadáveres e histéricas, encontrara favelados que haviam sido ricos, entrevistara miseráveis de sorte, premiados pela loteria. Tudo a mesma merda. Agora, nada que valesse a pena escrever acontecia.

Pedro escreveu duas frases originais na vida. Uma não cabe aqui. A outra é:

- "No Brasil, não tem bebê feio, nem morto mau caráter".

Desde que nascera, Pedro sabia que vida, morte, nada é mais ocioso que procurar sentido nisso. A metáfora da vida é a dança da chuva: ninguém ali espera, a sério, que a chuva venha; no entanto, dança-se. Quem não entende isso pode morrer que não faz falta. Nessa vida, meu velho, somos nós e nossos afetos.

Perseguia, por isso, paixões – e era uma fagulha disso o que acendera nele Clarissa. Vivera romances ignóbeis e frágeis, desejara mulheres impossíveis, amara demais, amor algum. Por isso acabara-se o caso com Lílian, aquela garotinha genial do jornal: embora fosse impossível esquecê-la, ela trabalhava demais. O que o emputecia em Clarissa era agora outra coisa. Ela fora incapaz de ver no interesse dele a curiosidade, a vibração, o desejo, a linguagem de saliva, suor, sêmen, sangue, de outros fluidos, outras aliterações. Clarissa estava numa cápsula. Se ela não conseguia compreender-se, o que se esperaria de outro?

Pedro deu-se conta de tudo isso num segundo.

No segundo seguinte – aproveitando-se de um silêncio idêntico ao que, nos filmes de Almodóvar, acompanha as cenas mais bizarras –, segurou as mãos de Clarissa, essa mulher sem qualidades, essa mulher que um ano atrás vira a cara da morte bem viva, e disse:

- Clarissa, eu te amo.

Clarissa o observou com um olhar vazio – os cabelos sem brilho, o rosto sem formas, a pele sem viço, as sobrancelhas opacas, os olhos de neblina.

Sabia que era mentira.

Mas entendera, enfim, que para Pedro nada poderia ser mais verdadeiro.



*Texto lido pelo orientador Jacques Mick na defesa do ensaio "Na própria pele", de Lílian Albertina Cardoso.

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