Há cinco anos, na passagem das comemorações do aniversário de Joinville, os historiadores Apolinário Ternes e Dilnei Cunha “travaram” um diálogo por meio do jornal A Notícia sobre alguns pontos divergentes em relação à história do município. Apolinário Ternes representava a etnia alemã e Dilnei Cunha, a etnia suíça. Mesmo que o motivo da discussão tenha sido considerado irrelevante para muitos, pois estava pautado principalmente na divergência quanto ao número de imigrantes (Ternes afirmava que a maioria era de origem alemã e Cunha defendia que era suíça) e na data de sua chegada na então Colônia Dona Francisca (Cunha alegava ser no dia 8 de março, contrariando Ternes), foi de importância fundamental para iniciar uma reflexão em torno dos mitos e verdades expressos para além da historiografia da imigração e colonização de Joinville.
Ofensas para alguns, descobertas para outros. Assim é a história, uma ciência que desperta paixões exatamente porque o historiador, ao lidar com documentos – sua fonte de pesquisa – seleciona-os dentro da sua visão, submetendo-os a uma concepção teórica. O historiador acadêmico tem maior liberdade para fazer interpretações dos documentos históricos, pois seu compromisso é com a ciência. Fora da academia, o historiador – na maioria dos casos - se obriga a pesquisar com recursos financeiros de empresas. Nesse sentido, até a escolha dos documentos a serem analisados não é aleatória, mas são intencionalmente refutados aqueles que podem depor contra os interesses dos financiadores da pesquisa. A história já deu exemplo de como os documentos podem ser manipulados.
Como pesquisadora com formação acadêmica em história, passei muito tempo – muitos meses, durante muitos anos – dentro do Arquivo Histórico Municipal pesquisando, manuseando documentos, copiando matérias de jornais, atas da Câmara de Vereadores, no sentido de reunir material que respondesse às necessidades dos temas que pesquisei.
Realizei pesquisa sobre a destruição dos sambaquis em Joinville desde a sua colonização, para pavimentar as ruas. Pesquisei sobre o carnaval em Joinville – 1882 a 1930 – escolhendo como fonte os jornais da época, incluindo uma vasta documentação existente no quartel militar, local de onde saiu o primeiro bloco carnavalesco da cidade de Joinville em 1922, “As Bahianinhas, a Cangica pegou Fogo”. Pesquisei sobre a “institucionalização” da ocupação das áreas de mangue em Joinville - ocasião em que verdadeiramente conheci a cidade, porque além das fontes impressas fui a campo entrevistar os moradores. Pesquisei sobre o direcionamento do ensino técnico em Joinville na época dos governos militares, daí o meu conhecimento da aproximação do governo neste período com certas empresas no município. Pesquisei sobre o “ajustamento” dos migrantes oriundos das áreas agrícolas dos municípios de Santa Catarina e do estado do Paraná nas décadas de 1960, 70 e 80, nas fábricas de Joinville. Esta última foi uma pesquisa exaustiva. Pesquisei todos os jornais de circulação da época durante as três décadas, além dos jornais de fábricas disponíveis no Arquivo Histórico, somando entrevistas com operários (ex-agricultores), gerentes de empresas, funcionários de recursos humanos, políticos e padres.
Estas pesquisas possibilitaram, à luz de autores teóricos de tendência reflexiva, a compreensão do “desenvolvimento” industrial em Joinville, no contexto da política do Estado de bem-estar social no país. Neste sentido, recomendo aos leitores o livro de Ido Luiz Michels, “Crítica ao Modelo Catarinense de Desenvolvimento”. O autor revela, mediante documentos, que o crescimento industrial no estado de Santa Catarina, incluindo Joinville, evidentemente, se deu por obra do incentivo financeiro do governo aos empresários.
Portanto, esta experiência de pesquisa me permite tecer considerações em relação ao município que escolhi para viver há mais de três décadas. Lembro que quando cheguei em Joinville fui procurar informações sobre a cidade no Museu Nacional de Imigração e Colonização, como muitas pessoas fazem. Lá me mostraram os pertences dos príncipes que residiram na casa. Essa história não me convenceu e, por isso, tempos depois comecei a garimpagem da historiografia, buscando informações primeiramente nos livros, que na época eram poucos, como os de Carlos Ficker (que apenas reuniu os documentos obtidos no Museu Imperial, em uma obra); Apolinário Ternes (que a reproduziu); Carlos de Oliveira (faz algumas análises para além dos imigrantes europeus, considerando os portugueses e afro-brasileiros); Adolfo Schneider (com as memórias dos seus). Porém, entendi que era preciso, ao ler esses livros, como diria Walter Benjamin, “escovar a contrapelo” e, com os fragmentos, conceber uma outra história.
Durante algum tempo fui professora de história de primeiro e segundo graus, atuando em escolas da rede pública e privada de Joinville. Pude constatar durante esses anos que não havia material de pesquisa nas escolas sobre Joinville. As informações eram coletadas no Museu Nacional de Imigração e Colonização, o mesmo que havia me informado sobre a história dos príncipes. Desenvolvi um trabalho intenso nas escolas por onde passava, escovando a contrapelo, incentivando a pesquisa e me explicando às diretoras e pais de alunos, por “estar destruindo as certezas das crianças”.
Hoje, uma nova geração de historiadores se faz presente, felizmente, oriunda da academia. Infelizmente, os livros ficam somente na academia.
No ano passado fui convidada para ministrar curso de capacitação em história aos professores da rede de ensino estadual, dentro do pressuposto teórico metodológico reflexivo, na linha do cotidiano. Parecia que o tempo não havia passado. A velha “história” dos mitos ali estava, poderosa, imperando entre a maioria dos professores e professoras.
Pois bem, o tempo passou, as crianças cresceram, os recepcionistas do museu já não são os mesmos, nem eu estou mais lecionando nessas escolas. Então, por que ainda pessoas se incomodam diante de uma visão histórica construída com os cacos que apareceram ao escovar a história a contrapelo? É uma questão a ser estudada.
Por estas e por outras, como “autêntica” descendente dos germânicos, continuo apaixonada pela história, sem traumas, apenas com o “espírito” inquieto que transborda irreverência à hipocrisia. Hipocrisia que o historiador Theodor Rodowicz-Oswiecimsky, “germânico”, portanto, denunciou ao escrever “A Colônia Dona Francisca no Sul do Brasil”, uma pesquisa que acompanhou os primeiros anos da colonização em Joinville, obra que só foi traduzida para a língua portuguesa no ano de 1992. Recomendo.
Valdete D. Niehues é socióloga e professora do Ielusc