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Matéria 1051, publicada em 11/04/2005.


:Jessé Giotti

Procurador: "MP não espera por denúncias"

Procurador da República comenta atribuições do MP

Amcle Lima e Vanessa Bencz

É de conhecimento popular o papel do profissional de jornalismo na sociedade – ele informa, por diversos meios de comunicação, os acontecimentos de interesse público. Por conseqüência, o jornalista investiga e denuncia irregularidades em qualquer setor da comunidade. Em tese o jornalista é um “cão-de-guarda” da democracia. Muitos, entretanto, se prestam a guardar outros interesses. Mas, ao contrário do que se pensa, não apenas a esse profissional é empregado tal adjetivo. Embora muita gente desconheça as funções do Ministério Público, este possui um papel análogo ao do jornalismo.

O MP é uma instituição desvinculada dos três Poderes do Estado (Executivo, Legislativo e Judiciário) e consta na Constituição Federal no capítulo das funções essenciais à Justiça. Seu compromisso é com “a defesa do povo”. “O Ministério luta pela consolidação de um modelo democrático, independente e efetivamente comprometido com a causa social, possuindo autonomia com orçamento, carreira e administração próprios”, informa o texto introdutório do site do Ministério Público de Santa Catarina. Ele está a serviço da sociedade e é essencial para que as leis da Justiça sejam executadas por inteiro, fiscalizando-as na sua atuação com os interesses sociais, individuais, coletivos e difusos (que não têm número determinado de titulares) da sociedade.

Os assuntos acerca do MP não são ensinados nos cursos de comunicação. No Ielusc, existe uma matéria chamada “Legislação e Ética”, mas esta aborda apenas os Poderes do Estado. O professor Gleber Pieniz, responsável pela disciplina, explica que os acadêmicos de comunicação não aprendem sobre o Ministério Público pelo mesmo motivo que os alunos de direito não são ensinados sobre o funcionamento da redação de um jornal, ainda que os futuros advogados venham a se relacionar com a imprensa. “É importante que o jornalista saiba sobre o Ministério Público e conheça suas características, mas não considero um dever da universidade preocupar-se em prepará-lo especificamente para isso. Essa deve ser uma incumbência pessoal e consciente do profissional em formação”, diz o professor. Por essa perspectiva os cursos de comunicação social teriam uma grade curricular sem fim, pois deveriam abordar mais detalhadamente assuntos de interesse público como a Lei de Responsabilidade Fiscal e tratados de extradição, por exemplo. “Acredito que a universidade deve, primeiro, desenvolver no aluno as habilidades, os conceitos e as atribuições da profissão; segundo, estimular no futuro profissional o pensamento complexo, crítico e autônomo.”

Abaixo confira a primeira parte da entrevista concedida pelo procurador da República Davy Lincoln Rocha, membro do Ministério Público Federal em Joinville. Ele comenta a respeito das divisões da instituição, suas atribuições e quais são as principais áreas de atuação do MP em Joinville. Epicentro da polêmica gerada em torno das ações ajuizadas contra os administradores da Escola de Balé Bolshoi no Brasil, o MP ganhou cor de inimigo público dos joinvilenses pela mídia local. Eis uma chance para conhecê-lo melhor.

Revi: O senhor poderia falar um pouco sobre a atuação do Ministério Público?

Davy: A divisão da Justiça é assim: a Constituição prevê a Justiça Estadual e a Justiça Federal. Prevê também o Ministério Público Estadual e o Federal. Na verdade o Ministério Público Federal é um dos ramos do Ministério Público da União. O Ministério Público da União é dividido em Ministério Público do Trabalho, Ministério Público Militar, Ministério Público do Distrito Federal e Territórios - atualmente não existem territórios, mas quando existirem já está instituído - e o Ministério Público Federal. São quatro ramos do Ministério Público da União. O ramo mais abrangente é o do Ministério Público Federal porque o Ministério Público do Trabalho só atua em causas trabalhistas em que esteja prevista a sua atuação. O Ministério Público Militar só atua em crimes praticados dentro das Forças Armadas por militares ou por civis a eles equiparados. O Ministério Público Federal atua em todas as causas cíveis e criminais em que haja interesse da União, como o crime de moeda falsa, por exemplo. Um dos grandes sustentáculos de um país é a credibilidade da sua moeda. Como a moeda é emitida exclusivamente pela Casa da Moeda, esse crime afeta o interesse da União e por isso é de atribuição da Justiça Federal. Nesse crime atuarão o Ministério Público Federal e as investigações ficarão a cargo da Polícia Federal. Estelionatos e desvios de dinheiro da Previdência Social também são crimes contra a União e ficam a cargo dessas mesmas instituições. Crimes contra o patrimônio público, da mesma forma. Entretanto, se forem crimes contra o patrimônio público municipal e estadual, ficam a cargo do Ministério Público Estadual e da Justiça Estadual. Caso haja dinheiro público federal envolvido, será de atribuição das instituições e órgãos federais. O membro do Ministério Público Estadual chama-se promotor de justiça. O membro do poder judiciário estadual chama-se juiz de direito, do poder judiciário federal chama-se juiz federal.

Revi: Existem diferenças em termos de hierarquia?

Davy: Nenhuma. A diferença é que o juiz de direito atuará em crimes estaduais. O crime de furto, salvo em casos que ofendam a União e autarquias federais, será de atribuição da Justiça Estadual. Então, a Justiça Federal atua por exceção. A regra geral é que os crimes sejam julgados pela Justiça Estadual.

Revi: O Ministério Público está vinculado a algum dos três poderes?

Davy: O Ministério Público está previsto nos artigos 127 a 129 da Constituição Federal de 1988 como uma instituição autônoma e não como um órgão. É na verdade um paradoxo dentro da nossa Constituição, pois não está vinculado a nenhum dos três poderes, não é um braço de nenhuma outra instituição e não é um quarto poder. Pode-se dizer que está mais próximo de um quarto poder porque é independente.

Revi: O Ministério Público age a partir de denúncias?

Davy: Não. Quem depende de provocação para agir é o poder judiciário. O juiz não pode dar início a uma causa sem ser provocado. O Ministério Público não. Se o procurador da República ler no jornal, ouvir falar, se ele está dentro do ônibus e ouve as pessoas conversarem a respeito de um crime ou irregularidade que está acontecendo contra os interesses tutelados na Constituição como de atribuição do Ministério Público, ele pode e deve tomar a iniciativa de investigação. Ele não é inerte como o poder judiciário. Então está aqui [lendo a Constituição]: “O Ministério Público é uma instituição permanente”, isso porque ele não atua ocasionalmente, não pode ser fechado, não pode ser temporariamente afastado. “É essencial à função jurisdicional do Estado”.Quer dizer, em tese, pela Constituição o Ministério Público deveria atuar em todos os processos em que a justiça atua. Mas não é assim. Nas causas privadas de interesse individual e de cunho meramente patrimonial o Ministério Público não atua. Por exemplo, um cidadão contra um condomínio, contra uma empresa. É preciso um interesse maior que transcenda a individualidade e que alcance a coletividade. As palavras-chaves para a atuação do Ministério Público são: interesses coletivos, os chamados interesses difusos. O que é um interesse difuso? É aquele que tem um número indeterminado de titulares, como por exemplo, o direito ao meioambiente saudável. Então se uma fábrica está poluindo, ela está prejudicando todo mundo, um número difuso de pessoas. É também atribuição do Ministério Público a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. Então, por exemplo, se está havendo por parte dos supermercados um abuso genérico no trato com o consumidor, como quando está escrito na prateleira que não se pode comprar mais de dez latas. Isso é balela, está à venda, quantas estiverem ali eu posso comprar... [Neste momento uma ligação interrompe a entrevista. Do outro lado da linha falavam os policiais designados à proteção do procurador]

Revi: É constante a proteção?

Davy: Não, só agora que eu andei recebendo algumas ameaças... Mas então o Ministério Público também é responsável pela defesa dos interesses individuais indisponíveis. O que são os direitos indisponíveis? É o direito à vida, à saúde, dos menores de idade, das pessoas inválidas, dos incapazes e das pessoas que estão sob tutela e também a defesa dos índios, mas neste caso quando considerados como comunidade. Seguindo, então, são processos institucionais do Ministério Público: a unidade, ou seja, o Ministério Público é um só, mesmo sendo estadual ou federal, é considerado uno, a indivisibilidade e independência funcional. Isso quer dizer que ninguém pode avocar um processo no qual eu esteja atuando e ninguém pode reclamar com meu chefe para que ele interrompa as investigações. O procurador tem total independência nos processos em que atue inclusive para se manifestar teoricamente contra uma tese jurídica do procurador-geral da República [Cláudio Fontelles], que é o meu chefe. Por exemplo, ele se manifestou publicamente contra o aborto de feto anencefálico, eu sou favorável.

Revi: Em que áreas o Ministério Público mais atua?

Davy: Nós atuamos muito na área de saúde e meio ambiente. Em Joinville temos uma atuação histórica e contundente na defesa do meio ambiente. Posso destacar, por exemplo, uma ação que temos contra o município de Joinville e contra a Casan devido à poluição do Rio Cachoeira. O Flotflux está sendo praticado por causa disso, mas mesmo assim nós estamos questionando em juízo o sistema Flotflux. Outro exemplo é o da Tigre, que teve que investir mais de R$ 20 milhões em controles ambientais. Graças à atuação do Ministério Público você pode estacionar seu carro branco lá hoje e depois de meia hora ele não vai estar preto como estaria oito anos atrás. A empresa também entrou com uma medida compensatória há três anos no valor de 800 mil reais que reverteram na desapropriação das terras que hoje constituem o Parque da Caieira. Apesar disso, na última campanha, o prefeito [Marco Tebaldi] anunciou que o parque era obra dele e, no entanto, as terras foram compradas com dinheiro conquistado através de uma ação do Ministério Público. O município de Joinville entrou apenas com os funcionários para tomar conta e algumas instalações.

Revi: E no caso da saúde?

Davy: Na área da saúde nós ingressamos com diversas ações, inclusive ações individuais porque a saúde é um direito indisponível. Temos logrado êxito na obtenção desde remédios mais simples até os mais complexos negados pelo SUS [Sistema Único de Saúde]. A Constituição Federal, em seu artigo 196, prevê a garantia universal e integral da saúde pelo Estado, ou seja, todos têm direito ao tratamento médico desde o ambulatorial, hospitalar, cirúrgico e até mesmo aos complementares, como fisioterapia, acompanhamento e medicamentos. Nós conseguimos recentemente uma cirurgia que repôs o fêmur em uma pessoa que tinha perdido esse osso por causa de um câncer.

Revi: E as pessoas procuram diretamente o Ministério Público para isso?

Davy: Direto e reto. Nós temos mais de 50 ações ajuizadas nesse sentido. Já conseguimos cirurgias oftálmicas, cardíacas, vários tipos de exames caríssimos que o SUS não queria pagar, medicamentos para aidéticos etc. Baseados no direito do consumidor, nós obrigamos os planos de saúde, que se negavam, a internar aidéticos. Muita gente, entretanto, vai procurar esses direitos na Câmara de Vereadores porque acha que o vereador pode ajudar. Chegando lá, essas pessoas são encaminhadas para cá. Mas não é só esse tipo de causas que nós averiguamos. Atualmente estamos investigando a existência de um tomógrafo particular no São José, por exemplo. Nós queremos que o Estado compre o equipamento para evitar gastos desnecessários com terceirizações.

Revi: Como funcionam os processos de investigação?

Davy: Nós temos um instrumento de investigação na área cível. Quando ocorrem irregularidades contra os direitos constitucionais do cidadão que não configurem crime, a gente investiga. Quando configura o crime, é requisitada a Polícia Federal para que instaure inquérito. Mas nós acompanhamos as investigações. O Ministério Público tem a titularidade privativa da ação penal. Só quem pode entrar com ações penais é o Ministério Público. Salvo as chamadas ações penais privadas em alguns crimes contra a honra e a liberdade sexual. Porque tradicionalmente o legislador entende, e está certo nesse entendimento, que se uma mulher for estuprada ela pode preferir que o autor do crime permaneça impune, mas com isso ela evita o chamado escândalo do processo, a publicidade que o processo vai ter, porque o processo se torna público. Então ela prefere não iniciar o processo e fica a cargo dela escolher se entra ou não com essa ação penal. Mesma coisa um crime contra a honra, se alguém te calunia e você diz assim: é melhor ficar na minha porque só a repercussão disso vai ser tão negativa que eu prefiro deixar quieto. Fora esses que são crimes de ação privada, a esmagadora maioria dos crimes configura-se como de ação pública. Todos os crimes de ação pública são de iniciativa privativa do Ministério Público, seja o federal ou o estadual.

Revi: Em quantos processos o Ministério Público está trabalhando atualmente?

Davy: Milhares, porque nós atuamos em um total de cinco varas federais de Joinville e mais duas varas federais de Jaraguá, nós estamos acumulando Jaraguá. Então para que se possa entender melhor esse número grande de processos: a comarca é a menor divisão da justiça territorialmente falando no âmbito estadual. No âmbito federal essa circunscrição territorial é muito maior. Joinville é uma comarca que engloba mais 23 municípios. São Francisco do Sul é outra comarca, Araquari também. Todas essas comarcas integram a subseção judiciária da Justiça Federal. A comarca é a menor divisão territorial do alcance de julgamento de um juiz estadual, um juiz de direito. Como não tem Justiça Federal em todos os municípios, a subseção de Joinville abrange 18 cidades e mais cinco cidades da circunscrição de Jaraguá.

Revi: Então, o promotor Assis Kretzer, que trabalha no processo do Bolshoi, atua na comarca de Joinville?

Davy: Assis Maciel Kretzer é o membro do Ministério Público Estadual responsável pela promotoria da moralidade administrativa. A moralidade administrativa diz respeito à conduta e comportamento dos servidores públicos estaduais e municipais em relação ao patrimônio público, em relação à probidade administrativa. Então, se o promotor descobre que o servidor público pegou um carro oficial para fazer mudança, isso ocasiona uma série de sanções baseadas na lei de improbidade administrativa. Sanções não criminais, mas que podem ocasionar perda de cargo, pagamento de multa, ressarcimento, inelegibilidade, etc. E esse ato é um crime também. Contratação de empresa sem licitação quando é obrigatório licitar, compra superfaturada, fiscal que leva grana, policial que leva grana e até o escancarado desvio de verba ocorrido dentro do poder público municipal e estadual são crimes que ficam a cargo do Ministério Público Estadual.

Revi: Então a atuação do promotor e do procurador se dá em níveis diferentes.

Davy: O promotor atua na comarca e o âmbito territorial no qual ele atua é bem menor. Existem várias pequenas comarcas. Para você ter uma idéia, só a comarca do Ministério Público Estadual de Joinville tem 15 promotores de justiça. Se formos contar todos os municípios que fazem parte da subseção da Justiça Federal de Joinville nós vamos chegar a um número próximo de 40 promotores. Em toda essa área atuam apenas três procuradores da República. A nossa atuação, entretanto, é mais circunscrita, pois tem que haver o interesse da União. A vala comum é justiça estadual.

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