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Matéria 0990, publicada em 18/03/2005.


:Jacques Mick

Praia do Mediterrâneo ficou escondida pelo gelo

Neve recobre orgulho ensolarado dos moradores da Riviera

Jacques Mick*


A Côte d’Azur amanheceu coberta de blanc neste inverno. A neve escondeu a praia, e o Mediterrâneo, com as infinitas variações do azul que encantou Matisse e Picasso, derrubou sobre ela a espuma límpida de suas ondas. Nessa cena rara e fugaz, os moradores da Riviera francesa emolduraram o rigor da estação. Orgulhosos de 300 dias de sol por ano, congelaram na memória o 22 de fevereiro de 2005, o dia mais frio em duas décadas.

Em 1985, outro ano de inverno rigoroso, o fenômeno impressionou o escritor e publicitário inglês Peter Mayle, que havia se mudado de Londres para uma cidadezinha do sul da França. Desde a metade do século XIX conterrâneos de Mayle trocam o fog londrino pela promessa de sol mediterrâneo - daí vem o nome da avenida beira-mar de Nice, maior cidade da Côte d’Azur, a Promenade des Anglais (passeio dos ingleses). Surpreso com o frio e o vento que fustigaram a região há 20 anos, Mayle descreveu, em “Um ano na Provence”, as fotos nas capas de jornal: palmeiras salpicadas de gelo na Promenade, crianças com bonecos de neve, mar na praia branca.

Em 6 de janeiro de 1985, a nevasca amontoara 38 centímetros de água congelada na paisagem e bloqueara por dois dias o aeroporto internacional de Nice, o terceiro mais movimentado da França. No mês passado, isso não se repetiu — não apenas porque nevou menos, mas porque os administradores do aeroporto adotaram técnicas para limpar rapidamente as duas pistas. Pequenos caminhões polvilham sal grosso para amolecer o gelo, e patrolas raspam o que sobrou, sistema simples e eficaz adotado em toda a Europa. Os aviões decolaram quase sem atraso — mas, na manhã de 22 de fevereiro, poucos passageiros conseguiram chegar ao aeroporto.

Naquela terça-feira, a prefeitura de Nice demorou a descobrir que a nevasca da madrugada tinha sido forte e alcançara as regiões centrais e o litoral. Às 7h30, pensando na segurança dos motoristas, as autoridades mandaram bloquear a auto-estrada que concentra grande parte do trânsito da região. Quando foram enfim acionadas as equipes para salgar e raspar as pistas, era tarde demais: os funcionários, em caminhões, ficaram presos por horas no maior engarrafamento da história da cidade.

Os 350 mil moradores de Nice viveram meio dia de caos no trânsito, porque 60 mil motoristas foram forçados a trafegar por ruas onde normalmente circulam 15 mil veículos. Em dias normais, eles já são estourados no trânsito; buzinam por qualquer coisa, andam na pista exclusiva de ônibus, batem boca com os pedestres. Naquela manhã, bufavam dentro dos carros, embaçando os vidros.

Sem alunos nem professores, as escolas suspenderam as aulas pela manhã. Motoristas de ônibus sugeriram aos passageiros que descessem, porque ir a pé era mais rápido, e alguns suspenderam a viagem. Os caminhões com mais de 7,5 toneladas foram bloqueados na entrada da cidade, onde o congestionamento estendeu-se para além de 10 quilômetros. Quem foi liberado para circular não conseguiu ir muito longe. O caminhoneiro Dominique Cornet andou 2 quilômetros entre as 5h30 e as 11 horas, quando o trânsito foi liberado nas autopistas do contorno de Nice.

A preocupação da prefeitura com o risco de acidentes não era vazia de sentido. Dois dias antes da decisão de fechar a auto-estrada, houve uma nevasca a 200 metros do nível do mar. No trecho da rodovia que liga Nice às cidades do Leste (como Mônaco), uma motorista não enxergou a luz laranjada de alerta e bateu o Renault contra o posto de pedágio — uma senhora de 50 anos morreu e as outras três ficaram feridas. As pistas ficaram bloqueadas por quatro horas, tormento para 400 condutores. Quarenta e oito horas depois, os motoristas não gostaram da decisão orientada pela prudência. O prefeito Jacques Peyrat prometeu fazer funcionar mais cedo os sensores de neve sobre a auto-estrada. Eles já existem, mas não eram ligados sempre que os meteorologistas anunciavam um alerta para a região.

E eles foram muitos neste ano. Em 2005, nevou cinco vezes nas áreas próximas do litoral na Côte d’Azur. As redondezas de Nice foram cobertas de gelo em 24 de janeiro, três vezes em fevereiro (dias 22, 24 e 27), e a última na madrugada de 3 de março. O inverno foi duro em toda a França. E seco, mais para o norte. A explicação está no “anticiclone dos Açores”. O diretor da Méteo France no departamento de Provence, Gerard Amiel, explicou ao jornal Nice-Matin que essa massa de ar costuma ficar sobre a Espanha, mas em 2005 subiu demais: “Constatamos que o anticiclone estava localizado mais para o alto do que habitualmente. Neste inverno, ele se situou perto da Inglaterra e formou um obstáculo para as correntes de ar frio que vêm da Escandinávia. Em tempos normais, elas passam por cima de regiões habituadas ao frio, na Europa Central. Desta vez, ao contornar o obstáculo do anticiclone desde as ilhas britânicas, esta corrente de ar frio mergulha sobre nossa região”. Carregada de umidade no contato com o Mar Mediterrâneo, a massa de ar frio gera neve no litoral, mas poupa as regiões mais altas. Nas estações de esqui do Sul da França, as camadas de gelo custaram a chegar a 10 centímetros neste ano.

Fora o engarrafamento, as conseqüências do inverno foram típicas, embora algumas tenham sido incomuns para a população da Riviera. Aumentou o número de casos de gripe e o hospital pediátrico Lenval ficou alarmado com 75 ocorrências num só dia (12 de fevereiro). Os abrigos da assistência social e da Cruz Vermelha foram suficientes para os 117 moradores de rua da região e ninguém morreu de frio, ao contrário do que ocorreu em Paris. As pastilhas Valda venderam de 20 a 30% a mais, como ocorre todo ano, há um século.

O consumo de energia, no entanto, aumentou como não se via há duas décadas e bateu duas vezes o recorde. Às 19h15 de 28 de fevereiro, os franceses exigiam 86.024 MW de energia elétrica, o que levou a França a importar da Espanha e da Alemanha o equivalente a 3% do consumo. O aumento no preço do petróleo no mercado internacional está relacionado ao incremento do uso de energia na Europa, por causa do frio. Os franceses discutem agora o que fazer para o futuro: investir em geração ou apostar na eficácia das medidas de controle do consumo doméstico.

Para boa parte das atividades agrícolas, a neve foi uma tragédia. A produção de olivas, flores, legumes e vinho é significativa para a identidade do povo da Provence, embora a população rural de Nice seja atualmente de apenas 526 cidadãos. Nos 34 hectares cultivados com oliveiras milenares, as azeitonas pretas não colhidas antes das nevascas se parecem agora com uvas-passas, murchas e brilhantes. Ano perdido para o maior produtor do departamento, Jean-Yves Lessatini. Ele olha desolado para suas 1.200 oliveiras nas colinas: submetidas a temperaturas de até 10 graus negativos, perderam 70% da produção. Em percentual semelhante, verduras, legumes, flores e plantas ornamentais sensíveis ao frio foram queimadas pelo vento. Michel Rossi, que cultiva 60 limoeiros, disse ao Nice-Matin que os frutos “estão cozidos, murchos, bons para jogar na lixeira”. O preço dos limões importados da Espanha aumentou imediatamente 30%. Mesmo na agricultura, nem todo mundo se queixou. Algumas culturas podem se beneficiar do frio — que extermina parasitas e pode influir positivamente na qualidade dos frutos.

 

E, ao nível do mar, a neve é um espetáculo fascinante. Quando o sol apareceu, depois das 10 horas, e tornou cristalina a manhã de 22 de fevereiro, centenas de moradores e turistas foram para a praia. O Carnaval de Nice havia começado no dia 12 e se estenderia até 27 de fevereiro; a cidade estava repleta de alemães, nórdicos, russos, japoneses, e os italianos estão sempre por ali. A babel foi à praia, ver a neve, e encontrou os franceses — com seus pimpolhos. Houve um baby-boom na França e os carrinhos de bebê estão sempre na rua, não importa se faz 4 graus, se o vento vem da Escandinávia e se a neve torna escorregadio o caminho de qualquer veículo a rodas.

A neve do início de março revigorou as estações de esqui nos Alpes Marítimos, cordilheira que exibe suas primeiras montanhas para quem está na praia, em Nice. Os parisienses voltaram a lotar os hotéis em Auron, Valberg ou Isola, sob temperaturas de 5 graus negativos e gelo suficiente para a diversão de inverno. Na cidade, os turistas que chegaram para acompanhar a edição número 121 dos desfiles de Carnaval puderam apreciar o espetáculo como metáfora de sua própria experiência. O tema dos desfiles foi Le roi du fol climat merdaille e cornipetant (o rei desse clima louco, corno e de merda) e a proposta era refletir, ironicamente, sobre as mudanças climáticas no mundo, as mesmas que tornaram o verão de 2003 o mais agudo em 50 anos na França. Nos 15 dias da festa (bem diferente de qualquer carnaval no Brasil, parecida com uma parada cívica), 145 mil pagantes assistiram aos desfiles debaixo de frio glacial, vento, neve, chuva, geada — e até sol. Foram 30 mil visitantes a mais do que 2004. Eles deixaram nas bilheterias 1,62 milhão de euros (R$ 5,75 milhões) e foram embora sem ver o último toque do rei sobre o clima louco: a antecipação da primavera.

Os sinais vêm do ar, da terra e do mar. As temperaturas se elevaram e devem chegar aos 20 graus até o domingo. Os morangos começaram a ser colhidos e estão doces e suculentos, como a cada inverno rigoroso. Há uma semana, os pescadores recolhem do oceano uma pequena sardinha que só aparece, de acordo com a tradição, quando a primavera está por chegar. Os poutines (têm uma pinta perto do olho, daí o nome) estão à venda a 60 euros o quilo (R$ 216), e com 100 gramas os restaurantes fazem uma omelete típica da cozinha niçoise. Os turistas a temperam com o azeite de oliva da safra de 2004, que acaba de chegar aos mercados (14 euros, R$ 50, o litro), e com o vinho rosé de Bellet, ambos produzidos nas montanhas que cercam a cidade. Os moradores voltaram a banhar-se ao sol, na Promenade des Anglais. O calorzinho derreteu quase toda a neve sobre os Alpes. Só sobrou uma camada, fina como açúcar polvilhado no alto das montanhas — doce lembrança do pior inverno em 20 anos no Sul da França.




Jacques Mick é professor do Ielusc

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