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Matéria 1349, publicada em 25/08/2005.


:Jacques Mick

Esplendor da primavera no sul da França

Arco-íris de pétalas na Côte d´Azur

Jacques Mick


Gerânios, jasmins, tulipas e crisântemos. Lírios, anêmonas, magnólias e mimosas. Lavandas, orquídeas, bouganvilles, gérberas. Narcisos, íris, miosótis. Romarin, cistes, pivoines. Rosas brancas, amarelas, alaranjadas, vermelhas, bicolores e até mesmo cor-de-rosas. Desde o fim do inverno, as espécies se misturam nos canteiros e nas sacadas, nos jardins e nas encostas, nas montanhas e na beira do Mediterrâneo, no sul da França. O arco-íris de pétalas é um fenômeno híbrido, que brota espontaneamente no raro ecossistema da Côte d'Azur e se combina com políticas públicas que mobilizam a comunidade para multiplicar as flores.

A primavera é aquela exibição narcísica da natureza sob o sol. A partir dos primeiros dias de abril, as árvores dos bulevares vestiram de folhas verde-claro seus ramos nus e mudaram a cor da paisagem, durante todo o inverno difusa entre o cinza e o amarelo. De repente, flores rosadas brotaram em tufos abundantes nos galhos de árvores-da-judéia; são vívidos primeiros-planos para as fotos dos turistas nos cenários históricos, nas praias, nos intermináveis monumentos construídos entre Saint-Raphael e Menton desde 600 aC, quando navegadores da Grécia antiga aportaram pela primeira vez em Marselha.

A natureza também providenciou pétalas amarelas nas escarpas, arbustos liláses no pé das montanhas, plantas vermelhas nos vales ou subindo as paredes como semprevivas. Toda a flora francesa soma 4.300 espécies; na Riviera, vivem espontaneamente 2.400 e três dezenas delas são endêmicas, ou seja, só existem nesta parte do planeta. Tal riqueza natural se deve a uma geografia singular, que assemelha a Côte d'Azur a um anfiteatro. A bacia de água temperada do Mediterrâneo se opõe a picos gelados com até 3 mil metros de altura, cem quilômetros ao Norte. As montanhas formam uma barreira que protege as baías das principais correntes de vento; nessa espécie de estufa, plantas e animais frágeis podem crescer protegidos. Os Alpes Marítimos escaparam das eras glaciais e alguns seres arcaicos, que conseguiram subsistir nesse ambiente, esperam a primavera todo ano para pôr os raminhos de fora.

É o caso das griffes de sorcières, com finas pétalas lilases como um sol surrealista. As cistes parecem ter tido as folhas amassadas, uma a uma. Há ainda calicotomes, asphodèles, bruyères, dezenas de outras. As Fleurs de Provence viraram nome de perfume, mas são mais do que isso: estão na origem da possante indústria francesa da perfumaria, cuja capital internacional é a cidadezinha de Grasse, a 40 km de Nice. Os campos são um banquete para as abelhas, que fazem da região a maior produtora de mel da França, e uma inspiração para os artistas, que há mais de um século migram para o sul da Europa para escapar dos desconfortos de inverno.

As flores da Provence colorem telas célebres. Paul Cézanne, Pablo Picasso, Auguste Renoir, Claude Monet e Vincent Van Gogh são os mais conhecidos, mas centenas de pintores foram à Riviera se encontrar com a luz e com a cor. Nos quadros de Henri Matisse, que mudou-se para Nice em 1920, as flores aparecem em vasos, no papel de parede, nos tapetes, nos vestidos, na paisagem, nas toalhas de mesa - como em Grand Intérieur Rouge. A primavera entrou nos museus, e a exposição Sous le Soleil Exactement, aberta até 21 de agosto em Marselha, é um buquê com 127 quadros sobre a luz da Provence, pintados entre 1750 e 1920.

Com o Mediterrâneo ao sul e os Alpes Marítimos ao Norte, arquitetura marcante em cada bairro e História para todo lado, Nice, a capital da Côte d'Azur, não precisaria de mais flores para encantar turistas e alegrar seus moradores. Mesmo assim, o município investiu 5 milhões de euros (mais de R$ 15 milhões) desde 2003 no embelezamento dos jardins e canteiros públicos e recebeu no início de 2005 o Grande Prêmio Nacional do Florescimento. O título é concedido pelo Conselho Nacional de Cidades e Vilas Floridas, presidido pelo ministro do Turismo, Léon Bertrand. O Conselho promove um concurso anual, e a 45a. edição, no ano passado, mobilizou 11.403 comunidades. Foram premiadas com quatro flores 187 cidades e a elite delas mereceu o Grande Prêmio.

O título reconhece uma revolução botânica em Nice. Jean-Michel Meuriot é o engenheiro encarregado do florescimento. Surpreender e inovar é o negócio dele e de 300 jardineiros. São uns artistas, que distribuem cores na paisagem urbana como numa tela - mas, à diferença dos pintores, eles não vêem o resultado de imediato, e, quando podem vê-lo, é por pouco tempo. Nos 43 hectares de plantas e flores da cidade, de cada 100 unidades semeadas, 40 desaparecem. Os oito parques públicos são exceção; o maior deles, o Parc Phoenix, tem mais de 2.000 espécies de plantas e flores, uma estufa que reproduz cinco tipos de climas e encrava, no ar seco e temperado de Nice, alguns metros quadrados da temperatura e umidade amazônicas.

Em 2005, por causa do calor precoce, o Concurso Nacional de Cidades e Vilas Floridas ameaça ser suspenso, o que semeia a fúria e o ciúme em cidadãos e administradores dos vilarejos interessados em obter a honraria que atrai turistas e envaidece os nativos. A jardinagem é um hobby nacional (como a bricolagem, mania de consertar ou fabricar coisas em casa). Parte da abundância floral de Nice está em territórios fora do alcance da prefeitura - as sacadas dos apartamentos, os pátios das villas, os ambientes comerciais. A iniciativa pública é completada pela ação dos eleitores, que preparam as floreiras no inverno e regam, aparam, adubam as plantas na primavera. Melhor pra Nice, pois os avaliadores do Grande Prêmio do Florescimento consideram o trabalho das comunidades. 55% da nota final referem-se à qualidade vegetal da cidade (ou seja, a variedade de árvores, arbustos e flores) e 45%, à qualidade de vida, medida em respeito ao meio-ambiente, envolvimento da população nas ações de florescimento e iniciativas públicas de motivação.

Neste ano, a primavera foi mais curta, sobretudo no norte da França. O inverno prolongou-se abril adentro e, no fim de maio, a temperatura chegou aos 30 graus no litoral do Atlântico. Prenúncio de um verão, talvez, tão tórrido quanto o de 2003, que matou de desidratação idosos e crianças.

Maio é o setembro dos franceses. À medida que as plantas se cobrem a humanidade se despe, e as praias são decoradas por toalhas e seios de fora. Em Nice, a festividade mais tradicional da cidade (vem desde 1821, antes mesmo do Carnaval) é a Fête des Mais, uma espécie de quermesse no parque e nas arenas greco-romanas de Cimiez, onde começou a colonização do lugar. É o lu festin de Nissa, ou "a festa de Nice" no idioma niçois, cultivado nas esquinas da cidade velha (viéia villa) e nas rodas de petanque.

Em maio, os plátanos pelados se cobriram de folhas verde-claro e, em todas as praças, oferecem sombra para os jogadores de petanque. É um esporte típico da Provence, muito parecido com a bocha das comunidades italianas do sul do Brasil: os participantes disputam a melhor pontaria atirando bolas do tamanho de uma maçã na direção de uma bolinha do diâmetro de uma ameixa e ganha quem chegar mais perto. Indiferentes ao Festival de Cannes, ao Grande Prêmio de Mônaco de Fórmula 1, ao vaivém das estrelas no aeroporto ou na beira do mar, os jogadores de petanque celebram a amizade ao sol. O jogo é o convívio, a fofoca, o riso, a vida. As bolas de metal são o pretexto – e a primavera, o cenário mais bonito.

* Jacques Mick é professor do Ielusc


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