Gerânios, jasmins, tulipas e crisântemos. Lírios, anêmonas, magnólias e
mimosas. Lavandas, orquídeas, bouganvilles, gérberas. Narcisos, íris, miosótis.
Romarin, cistes, pivoines. Rosas brancas, amarelas, alaranjadas, vermelhas,
bicolores e até mesmo cor-de-rosas. Desde o fim do inverno, as espécies se
misturam nos canteiros e nas sacadas, nos jardins e nas encostas, nas montanhas
e na beira do Mediterrâneo, no sul da França. O arco-íris de pétalas é um
fenômeno híbrido, que brota espontaneamente no raro ecossistema da Côte d'Azur e
se combina com políticas públicas que mobilizam a comunidade para multiplicar as
flores.
A primavera é aquela exibição narcísica da natureza sob o sol. A partir dos
primeiros dias de abril, as árvores dos bulevares vestiram de folhas verde-claro
seus ramos nus e mudaram a cor da paisagem, durante todo o inverno difusa entre
o cinza e o amarelo. De repente, flores rosadas brotaram em tufos abundantes nos
galhos de árvores-da-judéia; são vívidos primeiros-planos para as fotos dos
turistas nos cenários históricos, nas praias, nos intermináveis monumentos
construídos entre Saint-Raphael e Menton desde 600 aC, quando navegadores da
Grécia antiga aportaram pela primeira vez em Marselha.
A natureza também providenciou pétalas amarelas nas escarpas, arbustos
liláses no pé das montanhas, plantas vermelhas nos vales ou subindo as paredes
como semprevivas. Toda a flora francesa soma 4.300 espécies; na Riviera, vivem
espontaneamente 2.400 e três dezenas delas são endêmicas, ou seja, só existem
nesta parte do planeta. Tal riqueza natural se deve a uma geografia singular,
que assemelha a Côte d'Azur a um anfiteatro. A bacia de água temperada do
Mediterrâneo se opõe a picos gelados com até 3 mil metros de altura, cem
quilômetros ao Norte. As montanhas formam uma barreira que protege as baías das
principais correntes de vento; nessa espécie de estufa, plantas e animais
frágeis podem crescer protegidos. Os Alpes Marítimos escaparam das eras glaciais
e alguns seres arcaicos, que conseguiram subsistir nesse ambiente, esperam a
primavera todo ano para pôr os raminhos de fora.
É o caso das griffes de sorcières, com finas pétalas lilases como um sol
surrealista. As cistes parecem ter tido as folhas amassadas, uma a uma. Há ainda
calicotomes, asphodèles, bruyères, dezenas de outras. As Fleurs de Provence
viraram nome de perfume, mas são mais do que isso: estão na origem da possante
indústria francesa da perfumaria, cuja capital internacional é a cidadezinha de
Grasse, a 40 km de Nice. Os campos são um banquete para as abelhas, que fazem da
região a maior produtora de mel da França, e uma inspiração para os artistas,
que há mais de um século migram para o sul da Europa para escapar dos
desconfortos de inverno.
As flores da Provence colorem telas célebres. Paul Cézanne, Pablo Picasso,
Auguste Renoir, Claude Monet e Vincent Van Gogh são os mais conhecidos, mas
centenas de pintores foram à Riviera se encontrar com a luz e com a cor. Nos
quadros de Henri Matisse, que mudou-se para Nice em 1920, as flores aparecem em
vasos, no papel de parede, nos tapetes, nos vestidos, na paisagem, nas toalhas
de mesa - como em Grand Intérieur Rouge. A primavera entrou nos museus, e a
exposição Sous le Soleil Exactement, aberta até 21 de agosto em Marselha, é um
buquê com 127 quadros sobre a luz da Provence, pintados entre 1750 e 1920.
Com o Mediterrâneo ao sul e os Alpes Marítimos ao Norte, arquitetura marcante
em cada bairro e História para todo lado, Nice, a capital da Côte d'Azur, não
precisaria de mais flores para encantar turistas e alegrar seus moradores. Mesmo
assim, o município investiu 5 milhões de euros (mais de R$ 15 milhões) desde
2003 no embelezamento dos jardins e canteiros públicos e recebeu no início de
2005 o Grande Prêmio Nacional do Florescimento. O título é concedido pelo
Conselho Nacional de Cidades e Vilas Floridas, presidido pelo ministro do
Turismo, Léon Bertrand. O Conselho promove um concurso anual, e a 45a. edição,
no ano passado, mobilizou 11.403 comunidades. Foram premiadas com quatro flores
187 cidades e a elite delas mereceu o Grande Prêmio.
O título reconhece uma revolução botânica em Nice. Jean-Michel Meuriot é o
engenheiro encarregado do florescimento. Surpreender e inovar é o negócio dele e
de 300 jardineiros. São uns artistas, que distribuem cores na paisagem urbana
como numa tela - mas, à diferença dos pintores, eles não vêem o resultado de
imediato, e, quando podem vê-lo, é por pouco tempo. Nos 43 hectares de plantas e
flores da cidade, de cada 100 unidades semeadas, 40 desaparecem. Os oito parques
públicos são exceção; o maior deles, o Parc Phoenix, tem mais de 2.000 espécies
de plantas e flores, uma estufa que reproduz cinco tipos de climas e encrava, no
ar seco e temperado de Nice, alguns metros quadrados da temperatura e umidade
amazônicas.
Em 2005, por causa do calor precoce, o Concurso Nacional de Cidades e Vilas
Floridas ameaça ser suspenso, o que semeia a fúria e o ciúme em cidadãos e
administradores dos vilarejos interessados em obter a honraria que atrai
turistas e envaidece os nativos. A jardinagem é um hobby nacional (como a
bricolagem, mania de consertar ou fabricar coisas em casa). Parte da abundância
floral de Nice está em territórios fora do alcance da prefeitura - as sacadas
dos apartamentos, os pátios das villas, os ambientes comerciais. A iniciativa
pública é completada pela ação dos eleitores, que preparam as floreiras no
inverno e regam, aparam, adubam as plantas na primavera. Melhor pra Nice, pois
os avaliadores do Grande Prêmio do Florescimento consideram o trabalho das
comunidades. 55% da nota final referem-se à qualidade vegetal da cidade (ou
seja, a variedade de árvores, arbustos e flores) e 45%, à qualidade de vida,
medida em respeito ao meio-ambiente, envolvimento da população nas ações de
florescimento e iniciativas públicas de motivação.
Neste ano, a primavera foi mais curta, sobretudo no norte da França. O
inverno prolongou-se abril adentro e, no fim de maio, a temperatura chegou aos
30 graus no litoral do Atlântico. Prenúncio de um verão, talvez, tão tórrido
quanto o de 2003, que matou de desidratação idosos e crianças.
Maio é o setembro dos franceses. À medida que as plantas se cobrem a
humanidade se despe, e as praias são decoradas por toalhas e seios de fora. Em
Nice, a festividade mais tradicional da cidade (vem desde 1821, antes mesmo do
Carnaval) é a Fête des Mais, uma espécie de quermesse no parque e nas arenas
greco-romanas de Cimiez, onde começou a colonização do lugar. É o lu festin de
Nissa, ou "a festa de Nice" no idioma niçois, cultivado nas esquinas da cidade
velha (viéia villa) e nas rodas de petanque.
Em maio, os plátanos pelados se cobriram de folhas verde-claro e, em todas as
praças, oferecem sombra para os jogadores de petanque. É um esporte típico da
Provence, muito parecido com a bocha das comunidades italianas do sul do Brasil:
os participantes disputam a melhor pontaria atirando bolas do tamanho de uma
maçã na direção de uma bolinha do diâmetro de uma ameixa e ganha quem chegar
mais perto. Indiferentes ao Festival de Cannes, ao Grande Prêmio de Mônaco de
Fórmula 1, ao vaivém das estrelas no aeroporto ou na beira do mar, os jogadores
de petanque celebram a amizade ao sol. O jogo é o convívio, a fofoca, o riso, a
vida. As bolas de metal são o pretexto – e a primavera, o cenário mais bonito.
* Jacques Mick é professor do Ielusc