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Matéria 0981, publicada em 15/03/2005.


Lauro no escuro

Sílvio Melatti

Minhas retinas fatigadas nunca viram algo parecido, meus ouvidos não o captaram, e semelhante coisa jamais passou pelo meu tato, olfato ou paladar. E tudo havia começado assim, com um papo meio esotérico sobre os cinco sentidos e a comunicação, que interpretei como típica recaída de um velho comunista — pecado no qual incorrem muitos materialistas ao final de vida, quando, cansados e perdidos, voltam-se para idéias metafísicas. No momento em que o palestrante falou em sexto sentido, então, eu queria me enfiar embaixo da mesa. Afinal, a vinda dele havia sido proposta por mim. Mas nem precisei me esconder: a luz acabou, e Lauro continuou discursando no escuro, e a platéia ouvindo no escuro, e só me restou ficar de lanterninha, iluminando o palestrante com a parca luz do celular.

“Ganhei a vida com a voz”, diz Lauro quando o auditório mergulha no breu, “e nem sempre a voz precisa de microfone.” Aplausos. Lauro retoma a fala, imperturbável. Quem ocupa as primeiras fileiras tenta ajudar na iluminação apontando a telinha do celular para o palco. Ninguém se mexe. A voz modulada do locutor perfura a escuridão, tenta empurrar a escuridão para o fundo do auditório, mas quem desvela rostos e blocos de anotações, por breves segundos, é o visor de celulares acionados de ponto em ponto, vagalumes estáticos da era digital.

Curioso é que, no escuro, a conversa foi menos tortuosa do que no claro. Era como se a luz inicial houvesse sido excessiva e tirasse o foco da fala, que a escuridão, irmã do silêncio, resgatou com precisão. Aí vieram as histórias do Repórter Esso, da Cadeia da Legalidade, da militância comunista, da ética. Lauro mirava no escuro e acertava. E, por força do hábito, não largou o microfone, embora o aparelho nada captasse e nada ampliasse. Lauro de microfone mudo na mão, falando no escuro, era a imagem do absurdo. Mas era também a imagem, por assim dizer, da metalinguagem: o locutor eterno narrando a própria memória, a voz dizendo-se sem intermeios.

Eis que a voz se cala. O auditório parece mergulhar ainda mais fundo na noite, a penumbra se adensa puxada pelo silêncio repentino. Então a voz pergunta ao escuro: “Alguém gostaria de fazer uma pergunta?”. E antes que o escuro responda, eu, o lanterninha, com o braço doído de segurar o celular, digo: “Como não dá para fazer inscrição, e eu não vou enxergar mãos levantadas, vocês fiquem à vontade para usarem as suas vozes quando houver pausa”. Mal termino de falar e já surge a primeira pergunta. Mal termina a resposta de Lauro, outra voz intervém. É um bate-bola no escuro. Mas a bola não cai, os jogadores não se chocam, revelando uma elegância que a claridade sempre cegou.

Cada pergunta é antes de tudo uma voz, não um rosto. Em grave: “Como é possível conciliar militância política e jornalismo?”. Em agudo: “Então se pode dizer que a credibilidade de um profissional está ligada basicamente ao tempo de atuação?”. Em quase soprano: “Qual foi a notícia que o senhor teve mais prazer em narrar?”. E a variedade de modulações dá idéia do tamanho da orquestra. Sim, e soa afinada. Sim, Lauro é o maestro regendo uma sinfonia no escuro. Não, o mediador do debate não precisou interferir.

A esperança de que a luz voltasse agora se transforma em medo. Melhor que não volte, essa senhora invasiva que ofusca, dispersa, confunde, desagrega. Continuemos no breu, tateando com a voz, ouvindo pelos poros, degustando as sombras, cheirando as palavras, pelo menos uma vez na vida. Ora, estamos cegos de tanto ver. Seria o advento do sexto sentido de que falava Lauro no início da palestra? Quando o Dicézar criou o cartaz do evento, dois dias antes, e decidiu-se pelo fundo preto, teria tido uma premonição? Isso tudo quererá dizer algo, ou eu é que agora caio na cilada mística, hein, Russi, hein Felipe?

Na saída, quando os rostos foram se revelando à luz da rua, via-se uma expressão nova. Todos sabiam que aquela sexta-feira, 11 de março, fora uma noite para guardar na memória... auditiva, que segundo Lauro Hagemann é a mais indelével. E no cartaz com fundo preto a imagem do Lauro viu todos irem embora aos sussurros.

800x600. ©2005 Agência Experimental de Jornalismo/Revi & Secord/Rede Bonja.