Projeto de lei que tramitava há mais de três anos, o Ato Médico foi aprovado pela Câmara de Deputados e encaminhado ao Senado, onde será analisado, seguindo para a sanção presidencial. A proposta é de que a lei regule o exercício da medicina ao determinar procedimentos que devem ser realizados exclusivamente pelos médicos. Seu texto, no entanto, é impreciso ao definir o que são procedimentos invasivos. Tal imprecisão dá abertura, por exemplo, para que o peeling estético, a acupuntura e as tatuagens artísticas também sejam enquadrados como atividades que necessitam de presença médica para serem realizados. A brecha para diferentes interpretações da lei já está causando preocupação em tatuadores e body piercers do país.
O tatuador Márcio Ferreira da Silva acredita que a lei proposta é inconstitucional. “Médico tem o dever de praticar a medicina, não arte. Tatuagem é arte”, afirma. Segundo Márcio, tatuagem deve ser feita com responsabilidade e dentro das leis estipuladas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Os materiais devem ser esterilizados, descartáveis e a cicatrização depende principalmente da boa execução do trabalho. Ele reconhece, no entanto, que uma tatuagem apresenta riscos à saúde quando mal executada.
Administradora do estúdio em que Márcio trabalha, Marilene Paul não considera a tatuagem um procedimento invasivo e é contrária à exigência de médicos acompanhando essa atividade. Por outro lado, ela reconhece como intervenções cirúrgicas a prática de implantes subcutâneos (colocados através de pequenas cirurgias raramente feitas em tattoo shops) e a retirada de tatuagens (normalmente feitas por dermatologistas), aconselhando que sejam feitas na presença de um médico. Marilene também relembra a lei municipal que proibia a instalação de estúdios de tatuagem perto de escolas. A administração pública considerava que a medida preservava a integridade física e moral das crianças e adolescentes. O relator do processo que pedia a revogação da lei, por outro lado, ressaltou que as restrições para o funcionamento dos estúdios eram discriminatórias e proibiam o direito fundamental da liberdade de profissão, estabelecido na Constituição. A lei foi considerada inconstitucional e, por isso, derrubada.
Já existem regras
O tatuador Marco Antônio Hinorato, o Quinho, acredita que a fiscalização e as exigências da Anvisa já são suficientes como garantias à saúde da clientela. Para ele, os riscos que uma tatuagem representa começam pela higiene do local, que é fiscalizado regularmente. Caso a lei seja sancionada e passe a vigorar, Quinho acredita que quem sairá mais prejudicado será o consumidor, que pagará um preço mais alto pelas tatuagens.
Giovana Marissales, proprietária de um estúdio de tatuagem em Joinville, concorda com Quinho. O valor de uma tatuagem será alto, pois haverá custos para obter a fiscalização e a assinatura de um médico responsável. “Essa lei é inconstitucional. Vai encarecer o valor final da tatuagem. Isso não é necessário. Trabalhamos dentro das leis”, afirma. A empresária reforça que o uso de materiais esterilizados é fundamental. “A Anvisa fiscaliza periodicamente”, garante. Giovana revela que os tatuadores de seu estúdio fazem periodicamente cursos de biossegurança e oficinas de técnicas de tatuagem, além de serem formados em Artes Visuais. “Não é requisito, mas sempre estamos nos aprimorando”, explica.
Sindicato
Body piercer há 12 anos, Ronaldo Sampaio Brito, o Snoopy, é vice-presidente do Sindicato das Empresas de Tatuagem e Body Piercing do Brasil (Setap) e faz questão de esclarecer algumas questões em torno da nova lei. “Em relação ao projeto de lei 7703/06 do Ato Médico, temos um acordo com o Conselho Federal de Medicina (CFM) que só precisa ser oficializado por via de um documento”, diz. “Tivemos a oportunidade de, recentemente, em um programa de canal aberto, falar com o relator desse projeto de lei e com o presidente do CFM, doutor Roberto Dávila, que foi bem categórico em afirmar que nossas atividades estão excluídas desse projeto de lei”, afirma.
Snoopy acrescenta que em 2007 houve uma reunião dos profissionais de arte na pele com os representantes da classe médica. Nesse encontro foi discutida a possibilidade de regulamentação das atividades de dermopigmentador artístico (popularmente conhecido como tatuador) e de perfurador corporal (popularmente conhecido como body piercer). Existe também o projeto de lei n°2104/07, que está na Câmara de Deputados e em breve passará pelo Senado. Se for aprovado e entrar em vigor, irá exigir de tatuadores e body piercers cursos que diminuam os riscos de contaminação por doenças infecto-contagiosas durante os procedimentos. Assim, cursos de biossegurança, controle de infecção em atividade de risco, fisiologia da pele e primeiros socorros farão parte do currículo dos tatuadores. Segundo Snoopy, as máquinas e os pigmentos usados nas tatuagens já estão sendo regulamentadas pela Anvisa. “Estamos no rumo da nossa liberdade profissional”, comemora.
Em alguns estados brasileiros, o Setap obteve apoio do Senac para capacitar os trabalhadores da área em nível de curso técnico, com carga horária de 30 horas. Dentro de seu site, que registra mais de 20 mil visitas mensais, o sindicato disponibiliza informações sobre estúdios credenciados em vários municípios. Snoopy faz um convite: “Gostaríamos de convidar os estúdios de tatuagem e body piercing a se filiar. Mesmo remanescente de São Paulo, somos a única entidade de classe reconhecida em âmbito federal pelos órgãos vigentes de saúde”.
A reportagem da Revi tentou, por diversas vezes, ouvir dermatologistas e repercutir com esses profissionais os efeitos do Ato Médico, mas não obteve informações nem por telefone, nem por e-mail. Um dos poucos sites que abrem espaço para debater esse tema sob o ponto de vista da medicina é o Fala médico. Em alguns dos seus textos, o site tenta esclarecer a posição da classe com relação à lei, mostrando também a opinião de outros profissionais.