Ela foi, e será sempre, a voz de todos nós. Haydé Mercedes Sosa, “La Negra”, se encantou na madrugada primaveril antes que a última tentativa de golpe militar fosse inteiramente derrotada em Honduras. Sua música, sua voz, sua vida foram instrumentos de luta a serviço da esperança, da liberdade, do sonho humano que nos irmana por uma vida digna aos milhões de excluídos dessa pátria-continente, América Latina.
Seu canto se espalhou de Tucumán, norte argentino onde nasceu em 1935, para o mundo. Eu a conheci em Belém do Pará, em 1980: um violão encantado a acompanhava, o bombo leguero inseparável no colo e aquela voz que transcendia a alma. Naquela noite tive o privilégio de ouvir “Duerme Negrita”, “Te recuerdo, Amanda”, “Hermano dame tu mano”, “Volver a los 17”, “Balderrama”, “La carta”, “Alfonsina y el mar”, “Los hermanos”, “Canción com todos” e “Gracias a la vida”, entre outros clássicos de seu repertório. Ao final de mais de duas horas de concerto, alguém da platéia invade o palco. Uma certa tensão se faz: o fã se ajoelha reverente, beija seus pés e Mercedes lhe dá seu “poncho” de presente...
Na escuridão dos anos 1970, quando os ditadores eram os “donos da vida”, La Negra foi a grande parceira de Milton Nascimento, no Brasil. Juntos fizeram a semeadura da esperança, na luta pela democracia e liberdade, com seus cantos profundos, inigualáveis, cálidos... A canção de protesto foi a voz de milhares de trabalhadores, artistas e políticos exilados na escuridão dos anos de “chumbo”. Os ridículos tiranos argentinos a prenderam no palco, em La Plata, em 1979, e junto com ela todas as pessoas presentes.
Exilada, voltou à sua terra, anos depois, para fazer um show histórico que marcaria o fim da ditadura militar naquele País, em 1983. Ainda era um tempo em que “los niños ya no son niños/ son pájaros espantados,/ le temen a los soldados/ como a las bestias en piño”, como denunciava Violeta Parra. Mercedes, por fim, foi intérprete de “pajadores” como Victor Jara, Atahualpa Yupanqui, Silvio Rodríguez, Pablo Minalés, Ariel Ramirez, Milton Nascimento, León Gieco, Víctor Heredia, Pablo Neruda e, claro, Violeta Parra.
Os pássaros cantam nesta manhã de domingo, 4 de outubro, primavera de 2009, e na tela da televisão leio a notícia de teu encantamento. Ao fundo o violão e voz de Milton Nascimento: “Não se apaga, não se cala essa voz/Não se esquece, permanece essa voz/ Voando livre no espaço essa voz/ Eterno canto de esperança essa voz/ Nossa amiga não parou de cantar/ Ela é a voz de todos nós...”.
Afino o violão, arrumo na estante harmonias e letras de algumas canções eternizadas por esta grande mulher, intérprete gigante de seu tempo, povo, cultura.
O tempodestino também chora tua partida, como uma canção para o infinito, que une a poesia de Pedro Casaldáliga e Ernesto Cardenal:
“Estamos olhando a lua (saturada de sangue mártir)
e as árvores da selva (queimadas e renascendo) para saber quando haverá mudança de poder
E sabemos que nosso dever, como o teu
é nascer de novo juntamente com a América Latina”.
Gracias a la vida, que nos ha dado... ustede! Hasta siempre, La Negra!
* Jornalista, repórter especial do jornal Notícias do Dia (Joinville e Florianópolis/SC). É doutor em Mídia e Teoria do Conhecimento (Ufsc, 2005).