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Matéria 7092, publicada em 23/09/2008.


Uns instantes em uma biblioteca farense

Sidney Azevedo


Quando subia as ladeiras de Faro, em direção à biblioteca, ouvia uns sujeitos sempre a discutir literatura às portas da tasca com canecos metálicos às mãos.

– Machado de Assis é subtil!

E só. O bruxo do Cosme Velho não tinha sequer direito a sinônimos. Não, minto, recebia este:

– De um sorrateirismo de gatos das pardas noites.

Sorrateiro. Não havia engano. A discussão em torno dele era breve, de caráter assertivo e de um concisismo necessariamente neologístico. Mas, voltando às noites, que é o que importa, as noites é que são pardas em sua indiscernibilidade, não sei se já o percebestes, caro leitor. Inclusive esta escrita noturna e nocturna, que é também imitação desairosa, é parda.

Mas não era noite ainda. Era ainda o crepúsculo a cair, e não o fez o último raio de sol daquele insosso dia sem aguardar minha passagem pela porta da biblioteca. Se eu fosse mais amigo dos livros poderia dizer que passei-me com ênclise à transcendência. Mas não sou amigo, nem editor deles. Fosse o primeiro, namorava-lhes só as idéias. Caso o segundo, fazia valer em boas patacas o papel. Ou fazia em ambos os casos as duas coisas. Não é o futuro determinável e sabe-o o distraído que lê isto, se é que consigo fazer alguém se distrair com essas aparentes prateleiras de reflexões conhecidas.

Ah, as prateleiras, rumei a elas, à procura de algo para ler à noite. Tinha um volume de Vergílio Ferreira às mãos, topei com Machado de Assis. Lembrei-me dos etílicos goles que bebiam os senhores a discutir literaturas uns metros abaixo e fiquei tentado a lê-lo. Olhava para um livro e para outro. Como que feito de estuque fiquei uns cinco segundos. O ar recendia a papel velho, à exceção do livro do Machado. Era uma edição de dois anos antes, irmanada com as de literatura brasileira, papéis rotos e encardidos se não eram encardidos à hora os olhos meus. Mas Deus logo veio e não me deixou cair em tentação.

Tomei emprestado Vergílio e ficou o Machado à prateleira. Saí veloz da biblioteca, achando que repetira alguma frase à rapariga da locação e ia-me para casa, a perguntar o que havia de tão curioso naquele livro. Na tasca, estavam ainda com o vinho às cabeças. A obra da vez era a de Proust. Mas já não discutiam, berravam uns com os outros. Que havia de tão diferente? Diz-me lá da sacada uma mulher:

– Vai logo, puto, que tua mãe tá a te esperar! Veio cá três vezes a querer saber de ti...

Cordialmente apressei o passo e logo chegara em casa. Pus-me a ler. Terminei daí a três dias, entendendo que os ratos é que defendiam a sociedade e que a plenitude dos atos não depende de modo algum da clareza. E eis que Fátima estava próxima: a nossa senhora olhava-me do alto da sala, na pequena cava à parede em que estava, pois a fé é assim também, difusa e certa por não se mostrar destes modos, mas como indiscernível.

O autor brasileiro ficaria para dias após o cruzamento do Atlântico, na biblioteca de Joinville. “Aparição” foi, assim, o último livro que li em Portugal. De Machado, nada sabia, e, como lição de militarismo, recolho-me a encerrar aqui a crônica, que deveria ser, tão-só, um momento. Perdoe-me, amigo leitor. Hás-de entender..., a constância é o custo do molde. Antigo é o teatro grego de um dia só.

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