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Matéria 6782, publicada em 29/08/2008.


Bíblia, garganta e solidão

Luiza Martin


Alguém que todos vêem e ninguém conhece

Desacompanhada, a senhora que leva a Bíblia grita, sem direcionar palavras a alguém. Pela rua do Príncipe, ela é vista a caminhar e maldizer o mundo, revelando um futuro incerto para a humanidade. A mulher, que tem a pele no tom marrom dos troncos de Salgueiro e nos cabelos uma confusão de fios alvos e gris (feito as nuvens de um dia de sol, poluídas como as de São Paulo), profetiza o fim dos tempos nas esquinas do centro de Joinville.

“Ela mistura palavras. Grita. Mistura passagens da bíblia com os acontecimentos e profere frases como se fossem profecias”, comentou, “o-policial-que-saiu-para-fazer-uma-ocorrência-e-não-pôde-dizer-o-nome”. Essa identificação foi sugerida por ele, que ficou parado enquanto conversava com dois colegas em frente ao bar onde trabalha Edson da Silva Cardoso. Edson é garçom e lembrou da “mulher de cor”. Ele não a conhece, embora tenha ouvido, de longe, alguns sermões: “Nada é dito diretamente a alguém”.

Pouco se sabe sobre ela. Poucos se aproximam dela. “Não tem nem jeito de conversar com ela”, disse o vendedor de churros, Getúlio Padilha. Ele frita a massa do doce onde a rua Três de Maio se encontra com a do Príncipe e já viu, desse ponto, a “mulher da Bíblia” — batizada assim pela esposa do vendedor — passar, parar na esquina em frente e expulsar os que tentaram manter um diálogo. Maria Padilha voltava para casa em um ônibus que trafegava do centro rumo ao bairro Itaum e, na mesma locomoção, estava a senhora das profecias. Maria e Getúlio a avistaram em tantos lugares (no Fátima, no Boa Vista) que não saberiam afirmar se habitam o mesmo bairro da “mulher da Bíblia”. O casal a considera louca.

“Alguém me falou uma vez que ela mora no Guanabara”, comentou Aline, vendedora da loja de calçados, sem muita certeza. Aline acredita que a senhora não é louca, tem família e até ouviu uma menina chamá-la de tia. A vendedora criou uma história sobre a mulher e imaginou: “Ela deve ter familiares e casa, mas ninguém a segura quando, decidida, sai para pregar as palavras da Bíblia”. A senhora não aparece sempre. Na semana do dia 28 de agosto ela não passou pela Rua do Príncipe. “Acredito que ela venha quando o Centro está cheio”, afirmou Aline. Os brados da “mulher da Bíblia” não a transformam em louca. Segundo a vendedora, a profetiza é “fanática”.

A senhora de cabelos grisalhos e mente inquieta mora no limiar da loucura e do fanatismo, para os que a observam andar nas ruas. De acordo com ensaio escrito pelo psicanalista Raymundo de Lima (encontrado na internet), o fanático não fala, discursa. Ninguém parece existir diante dos olhos da mulher. O diálogo é entre ela e a bíblia contra o mal. Em seu texto intitulado “Fanatismo religioso entre outros”, o psicanalista considera o fanático um “porta-voz de um sistema de crenças moralistas carregado de ódio em relação ao suposto inimigo ou adversário que precisa ser destruído para reinar o bem”. Alguns que percebem a senhora e suas palavras, em meio ao tempo escasso e a alta velocidade cotidiana, pensam logo que é louca. E a loucura de Frederico Ricciardi, parafraseando Philippe Pinel é “outra maneira de ser humano” — o que torna a insanidade “objeto de estudo científico” neste outro ensaio, achado na web, sobre o “Nascimento da loucura”. Afinal, o que ou quem é a "mulher da Bíblia"? A busca continua, à espera do encontro entre repórter e profetiza.

Veja aqui a foto da mulher da Bíblia (colaboração do leitor)

Comentários dos leitores
 

  • 9-/-0/2008 -

    Jéssica Michels [Joinville]:

     

    A mulher da Biblia.

     

    Já vi esta senhora um montão de vezes nos terminais. Já tentei falar com ela, mas nem adianta. Ela me xingou, começou a brigar, falar moralismos religiosos. Mas sempre com aquela bíblia na mão e aquele timbre, vozeirão. Hehehe.

  • 9-/-0/2008 -

    Gisele Krama [Joinville]:

     

     

    Não entrevistar a personagem principal é a maior sacada da matéria. Afinal, não é a senhora com a bíblia na mão que traz espanto e sim a reação das pessoas perante às profecias. É bom ver este outro lado da cidade das coisas que acontecem aqui.

  • 9-/-0/2008 -

    Priscila Carvalho [Joinville]:

     

     

    Mesmo sem ter encontrado o personagem principal, conseguistes articular muito bem o contexto da história, e os atores envolvidos, ou seja, as pessoas que já observaram a profetiza em solitárias pregações. Aguardo, ansiosamente, o encontro entre a repórter e a "mulher da bíblia". Belíssimo texto!.

  • 9-/-0/2008 -

    Gisele Krama [Joinville]:

     

     

    Gostei do seu texto. Parabéns!.

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