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Matéria 6531, publicada em 30/06/2008.


:Luiza Martin

Maga? Prostituta? Lucía...

Cortázar e o tangram literário

Luiza Martin


Assim como a criança levada pela mão consente, o leitor de Julio Cortázar é conduzido pelos capítulos de O Jogo da Amarelinha, sem limites de tempo e espaço, sem o controle exato de quanto já sabe da história – isso por eleger a seqüência incomum, proposta pelo escritor. Quem opta pela outra leitura, terminada no capítulo 56, aproveita menos do que o escritor oferece. Ele entrega, em 639 páginas, dois livros, a princípio, mas que podem ter os capítulos arranjados e lidos da maneira que convier, tornando-se muitos. Feito um Tangram literário, em que as peças não se modificam e originam incontáveis sentidos. Pode criar para além dos limites de um quadrilátero, quadrado convencional, dependendo da intenção de quem o lê.

– No que você está pensando? Na fôrma das palavras, de como elas foram moldadas para parecerem coisas que não são. Por essa condição se tornam amantes infiéis e necessárias.

Isto é algo que alguém (eu) encontrou para pensar e mostrou, da mesma maneira que Cortázar deixa saber em quais “rios metafísicos” se perdem suas personagens. Ele oferece a mente delas e seus frutos mais íntimos: concepções sobre o amor, banalidades, manias e acontecimentos corriqueiros que deixam de sê-lo devido ao detalhe último revelado, esmiuçado. Passa-se mais tempo na leitura das idéias que na descrição das ações. Aliás, o movimento, quando não é de introspecção e subjetivo, se torna pífio nas linhas do Jogo, que tenta não ser linear e consegue. As personagens conversam e protagonizam monólogos como se respondessem, espontaneamente, às perguntas do narrador (que nada questiona), que conta e é testemunha dos pensamentos mais profundos, insanos e fecundos – tal qual os de Oliveira sobre o mate imerso em água fervente.

Tudo é dialética. Os capítulos se entrelaçam no diálogo entre história e os mais variados temas. Destes, o próprio livro é o mais citado. Por meio das palavras de Morelli, escritor fictício que embala discussões do Clube da Serpente, Cortázar define características que ladeiam a sua obra: ele não insere os personagens nas situações, e sim, coloca a situação dos personagens, os humaniza. Saltando por capítulos, orientado pelo “tabuleiro de direção” (um índice adaptado à lógica da amarelinha), o leitor prova o que poderia ser mais um romance bem feito, no entanto é forçado a sair da história e ouvir o que o autor, seja Morelli ou Cortázar, deseja nos capítulos intitulados “prescindíveis”. Dispensáveis porque a narração é coerente sem eles, que complementam e insinuam essa complementaridade ao capítulo com que se relacionam – cada um tem números-bússolas no final, que apontam o norte do livro.

Quanto ao clube... Ele não tem paredes, chão, janelas; não é um lugar. É o espaço do Blues, do Jazz, da música das notas mais envolventes, que ditam os limites da noite regada à Vodka e devaneios. Delírio artístico e filosófico habitado pelas “pessoas” do jogo. Delas o protagonista (o chamo assim por falta de outro nome) assume o papel de Horacio Oliveira – um argentino, que mora sem ter casa, na França. Quase como seu criador. Julio nasceu. na Bélgica, viveu na Argentina e foi exilado pelos ditadores na atmosfera francesa. A narrativa que ele construiu tem, sobretudo, um ritmo vibrante que atrai pelos muitos mistérios, inclusive a Maga, de cujos olhos Oliveira gostaria de apreciar o mundo.

Cortázar, aos 70 anos, completou o jogo da amarelinha de sua vida em 1984. Foi sepultado no solo francês, junto de sua esposa, Carol Dunlop. A sentença da morte: complicações de uma leucemia. Um sujeito, criado por três mulheres – sua mãe, avó e tia –, que será conhecido pelas próximas gerações na mensagem deixada em cada escrito. Ele virou lembrança viva por meio das palavras, desleais. Elas são o único itinerário até o homem que foi Julio Cortázar.

Leia uma parte clássica do jogo

800x600. ©2005 Agência Experimental de Jornalismo/Revi & Secord/Rede Bonja.