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Matéria 4789, publicada em 02/09/2007.


Notícia e representação do real

Samuel Pantoja Lima*

A cobertura da crise das bolsas, que sacudiu as economias virtuais do mundo nas duas primeiras semanas de agosto, ofereceu dois parâmetros de “notícia” num mesmo programa, o “Bom Dia Brasil” (TV Globo).

Vou me concentrar em dois momentos: a nota interpretada pelo repórter Marcos Losekann (de Londres, edição 13/08/2007) e o contraponto entre o texto dele e outro do jornalista, Rodrigo Alvarez (edição 17/08/2007, de Nova York).

Depois da primeira semana de “crise”, Losekann (13/08) repetiu a conhecida cantilena de transformar o “mercado” em “ser midiático”, dotado de sentimentos humanos. O texto é um primor de discurso jornalístico sem informação. Aliás, para ser exato, há uma única: de que o Banco Central Europeu decidira pôr mais 150 bilhões de euros à disposição dos banqueiros. Para o repórter, o mercado tinha “humor”; estava “nervoso”; ficou “aliviado” com a maciça injeção de centenas de bilhões de dólares e euros; teve “febre” na Europa e vai por aí. Informação? Nenhum vestígio...

E finaliza com incrível desfaçatez: “O que pode segurar a tendência de alta é a promessa dos bancos centrais de continuar injetando dinheiro para sufocar a rebeldia do mercado. (...) Ásia, Europa e, principalmente, Estados Unidos estão unidos nessa estratégia. Resta saber até quando – e até quanto – vai durar o fôlego financeiro. Os analistas lembram que o mercado é guloso e bastante sensível” (grifos meus).

Ora, quem é o “mercado”? Quem compõe essa elite financeira que, montada num aparato de ultratecnologia, “investe” e “especula” no território sem fronteiras das bolsas de valores de todos os tipos? Até o reino mineral, como diria Mino Carta, sabe que um número muito reduzido de megacorporações financeiras, fundos de “hedge” (seguro), fundos de pensão e previdência são os “jogadores” que determinam as regras do “jogo” no cassino financeiro global. O discurso de Losekann passa longe dos critérios de notícia defendidos por seu chefe, Ali Kamel: correção, isenção, pluralismo, objetividade... O “jornalista-ator” Marcos Losekann encarna um novo tipo de “jornalismo”: o que faz interpretação, produção de sentidos (em narração arbitrária) e representação sobre o mundo factual.

Isto fica mais flagrante ainda se comparado a outro profissional, no mesmo programa (ed. 17/08). No final da segunda semana de crise das bolsas, Losekann e Álvarez assim interpretam e representam a notícia. Alguns trechos: Losekann - “O mercado de ações em Londres acordou de ressaca, nesta sexta-feira depois de ter registrado a pior queda da Europa: 4,1%. (...) A situação dos últimos dias, quando bancos centrais abriram os cofres e mesmo assim não evitaram a crise, mostra que dinheiro nem sempre compra a tranqüilidade do mercado”; Alvarez - “O epicentro desse terremoto financeiro são os Estados Unidos. E por essa os mercados globais não esperavam. Mas será que se pode falar em crise americana? (...) O culpado é conhecido: a ganância do setor financeiro dos Estados Unidos, que transformou empréstimos arriscados no setor imobiliário em papéis podres e contaminou o sistema financeiro. Do epicentro da crise, em Nova York, saiu a tsunami que invadiu os mercados”.

Do ponto de vista da produção social de sentidos é evidente a profunda diferença entre os dois textos. Ao ler as manchetes dos principais jornais do mundo, na mesma edição (17/08), o apresentador Renato Machado deu a síntese precisa daquele momento, publicada no jornal alemão Süddeutsch Zeitung: “É o preço da ganância”.

Na outra ponta dessa interação, o “telespectador” ou “consumidor de informações” que se vire como puder, engolindo o “prato feito ideológico” ou buscando outras fontes, em canais alternativos como sítios noticiosos, blogs e meia dúzia de veículos que ainda mantêm o compromisso com a verdade factual.

Resta-nos apostar na consciência crítica com a qual cada um de nós pode reinterpretar e ressignificar os conteúdos publicados na mídia, independente da orientação ideológica de origem.


Jornalista e coordenador do curso de jornalismo do Bom Jesus/ Ielusc

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