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Matéria 4690, publicada em 16/08/2007.


Pela poetização das raves

Eva Croll


“Foi o Marcelo que me inspirou para fazer esse trabalho”, disse Lygia Veny Casas (jornal), apontando para o rapaz sentado logo no início de uma das fileiras da sala C-21. Estranho. Aparentemente, os dois só tinham em comum a aliança dourada que usavam na mão esquerda. Ela curtia raves. Ele, rock'n'roll. Mais tarde, em uma conversa com o casal, descobriu-se que Marcelo Casas também gostava de raves, mas sustentava a ideologia de que toda a psicodelia envolvida no evento, que costuma durar mais de doze horas, não se limita apenas ao consumo de drogas (geralmente LSD e ecstasy) e à badalação.

Eis o gancho de “Raves sob a ótica do Novo Jornalismo”, orientado pelo professor Gleber Pieniz. Já passava das 19h15 quando Lygia exibiu vídeos com imagens da festa em Israel, Índia e Alemanha, todos acompanhados da batida típica que embala jovens até o nascer do sol. Revelando-se íntima de seu objeto de pesquisa, a aluna quis deixar claro, logo no início, o objetivo do trabalho: descrever as raves de forma literária, diferente do que faz o jornalismo tradicional, que veicula as festas com um certo teor de discriminação, ou seja, as manchetes sempre associam o evento às drogas e à “piração”.

A defesa durou pouco menos de meia hora, e foi composta de breves conceitos sobre Novo Jornalismo, música eletrônica e raves. Segundo a pesquisadora, são poucos os livros que tratam do assunto. A pesquisa traz dados surpreendentes como a revelação de que os primeiros índícios do estilo tenham surgido por volta dos anos 20. Apesar de ser mais conhecida como um pólo industrial, Joinville foi indicada, também, como um pólo de raves em Santa Catarina. A boa colocação da cidade no ranking das baladas eletrônicas comprova a aceitação do público das festas que,  pela investigação de Lygia, é formado por pessoas com boas condições financeiras — as entradas costumam custar, em média, de 30 a 40 reais. Além disso, antes de se comprar o ingresso, é preciso dispor de um carro, já que os eventos acontecem sempre em lugares afastados (campos, fazendas, sítios...) e ao ar livre.

E o jornalismo de pesquisa cedeu espaço, enfim, ao Novo Jornalismo. A acadêmica, que trabalhou por um ano na construção da monografia, fez-se a proposta de freqüentar três festas e escrever sobre elas fugindo da homogeneidade do jornalismo linear. Na primeira delas, a “Fusion”, que aconteceu no Recanto Davet, em Pirabeiraba, Lygia se envolveu tanto que nem lembra como foi que tudo acabou. “Eu tinha levado meu bloquinho na bolsa, mas, no fim, descobri que o tinha deixado cair no rio”, conta ela esboçando um sorriso. A segunda, “Magic Mushrooms”, no Piraí, e a terceira, “Hayad”, no Quiriri, mantiveram Lygia mais afastada, e ela pôde acompanhar tudo com olhos de mera espectadora. O resultado foram três grandes reportagens ricas em descrições e adjetivos, das quais seus amigos foram protagonistas.

“Para mim foi um desafio escrever essas reportagens, pois a faculdade não prepara bem para o Novo Jornalismo”, declarou a acadêmica às trinta pessoas que a assistiam. Após ler os textos com entusiasmo e fidelidade às onomatopéias, admitiu ter chegado a pensar que teria mais facilidade ao abordar o tema por ser freqüentadora das festas. Ao fim, desculpou-se, dizendo que, embora tivesse gostado do resultado final, o trabalho ainda não tinha alcançado suas expectativas. “Eu buscava respostas, mas não as encontrei”, disse. “Queria saber o que realmente leva as pessoas a freqüentarem estes lugares, os motivos. Acabei chegando à conclusão de que muita gente faz isso para se libertar do cotidiano, para ser algo que não podem ser no dia-a-dia, se libertarem”. Embora confusa, resumiu as festas a uma palavra: efervescência. E, depois, a três: “aqui e agora”.

A salva de palmas foi seguida da argüição da banca, composta por Juciano Lacerda e Silnei Soares. O primeiro a dirigir-se a Lygia foi Juciano. Elogiando a estrutura do trabalho, que primeiro contextualizou para depois apresentar a prática, classificou a acadêmica como ousada por ter feito de sua monografia uma reportagem. Leu trechos de “A mulher do próximo”, de Gay Talese, e comentou sobre as limitações que o jornalismo do dia-a-dia encontraria se fosse escrito nos moldes literários, como o tempo e espaço (diagramação). Questionou, também, a profundidade que Lygia diz encontrar nos adjetivos e nas descrições, e falou da falta que sentiu de embasamento científico e antropológico. Juciano ainda sugeriu que o glossário fosse abolido, e a explicação das palavras — vocabulário dos freqüentadores de raves — se desse no meio do próprio texto. A acadêmica respondeu a todos os questionamentos com voz e postura seguras, assim como se portou durante toda a apresentação.

Silnei Soares, no início de suas considerações, disse que o momento para a discussão literária era mais do que propício, afinal, no mesmo dia morrera Joel Silveira, jornalista que empregava — e muito bem — o gênero literário em suas obras. Fazendo suas algumas palavras de Juciano, revelou ter gostado mais da primeira grande reportagem lida por Lygia, e atribuiu isso ao fato de a aluna ter se deixado contaminar pelo seu objeto de estudo. Após ler em voz alta um dos melhores trechos da reportagem, classificou-o como “a descrição que se basta por si só”. As fotos dispostas no trabalho escrito foram uma boa quebra de ritmo de leitura e contaram pontos positivos no trabalho que deu um “pé-na-bunda do jornalismo hegemônico”.

Durante a reunião da banca, Lygia não fez questão de sentar-se. Abraçou amigas e atendeu a repórteres e curiosos. Foi quando apontou Marcelo como sua fonte de inspiração, o marido que lhe instigou a buscar as respostas que, ainda, não encontrou. Mas ela não pretende finalizar por aqui sua busca. No próximo ano, quer fazer mestrado em Antropologia na UFSC e, assim, poder dar continuidade à análise. Ela parecia tão tranqüila que continuou falando no mesmo tom quando avistou os três professores adentrando a sala. E assim continuou quando soube a nota: 8. E ficou a esperança de que o canudo não ponha um ponto final no trabalho de Lygia.

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