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Matéria 4382, publicada em 24/05/2007.


Robson Silva*


Operador e máquina, frente a frente. O linotipista posiciona os dedos no teclado. Como numa relação apaixonada, ele dialoga com a companheira de tantas madrugadas varadas nos fechamentos de jornais. Ajusta a máquina na medida de linha e entrelinhamentos desejados. Uma relação quente, 370 graus centígrados, temperados por doses exatas de chumbo e estanho. Aqui, o diálogo transcorre no ruído do ferro mecanizado que funciona articuladamente. Um namoro silencioso, porém produtor de muitas palavras. Uma relação na ponta dos dedos.

Na parte frontal superior da máquina, em formato de prancha, estão os magazines, uma série de canais internos onde ficam as matrizes das letras do tipo a ser composto. Teclas são pressionadas, automaticamente os moldes caem em seqüência para formar uma linha de composição. O linotipista coloca os caracteres e espaçadores em forma de cunha, tantos quantos couberem na medida ajustada.

Quando a linha está pronta para fundição, o operador puxa uma alavanca que provoca um verdadeiro balé mecânico. A linha, composta de matrizes e espaçadores, é transferida para o mecanismo de fundição. Os espaçadores são apertados entre as palavras para justificar a linha. O metal fundido, uma liga de chumbo e estanho, é injetado nas matrizes. E, finalmente, a linha composta é ejetada para a galé, uma espécie de prateleira anexa à máquina. Logo depois que a linha é fundida, as matrizes voltam ao magazine, através do distribuidor, e os espaçadores para uma caixa própria, prontos para a próxima composição.

Nessa máquina não são os bytes, os pulsos eletrônicos ou os códigos binários que garantem a perfeição, mas sim o olhar teimoso, clínico e atento do linotipista no comando de uma série de combinações de peças mecânicas. Inventada em 1886 por Ottmar Mergenthaler, de Baltimore, a linotipo, baseada na composição mecânica a partir de ligas metálicas, revolucionou o processo de produção de jornais, alcançando a impressionante marca de 3 mil cadernos, de quatro páginas, impressos por hora. Uma monstruosidade para os patamares da época. Hoje, por exemplo, a rotativa do A Notícia é capaz de rodar 30 mil cadernos de 24 páginas por hora. O nome “Linotipo” deriva-se da fundição de uma linha de tipos. Os tipos correspondem a cada uma das letras que, na composição manual, eram organizadas uma a uma até a conclusão do texto.

Paixão pela profissão

Do tempo suado da linotipia só restaram peças para museu, algumas máquinas em exposição e a lembrança dos personagens que vivenciaram essa época romântica do jornalismo. Gente como Prudêncio Evaristo da Silva, seu “Nelinho”, como é conhecido um senhor de cabelos levemente grisalhos e fala rápida que, do alto dos seus 72 anos, carrega grandes histórias de paixão pela profissão de linotipista. Ele poderia ser enquadrado no imenso grupo de profissionais que encerraram a carreira com o advento do computador, não fosse o ato de manter, no ranchinho dos fundos de casa, em Joinville, uma linotipo funcionando plenamente.

Se interrogassem esse senhor acerca das coisas mais belas que já viu, seguramente entre as suas escolhas responderia: as cores do pôr do sol, o barulho crescente da chuva vindo nas árvores, o som do mar ou o estrondo de uma cachoeira. Seu Nelinho diria mais: diria que nenhum ser humano deveria passar imune à visão de uma linotipo funcionando. “Ah, é uma imagem muito bela. É emocionante ver o ritmo alinhado do aço bruto trabalhando em harmonia delicada na produção das linhas”. Na opinião do linotipista, a perfeição é tanta que, a qualquer jornalista com o mínimo de paixão pela profissão, seria difícil conter as lágrimas ao contemplar a beleza da prática jornalista forjada em chumbo e estanho. Para ele, no tempo da linotipia sabia-se com clareza o quanto era nobre o caminho que uma matéria tinha que percorrer até chegar às mãos do leitor.

Manusear um jornal era sentir o resultado de um trabalho árduo, porém infinitamente prazeroso. Ainda na forma bruta, a notícia começava a ser esculpida na primeira letra marcada na lauda e só vinha a ser finalizada quando a última linha era composta e revisada na primeira prova: “A redação era um atelier de fatos. Os acontecimentos eram construídos de forma prática. O povo só sabia das coisas depois que a informação passava pela mão do linotipista”.

Nelinho lamenta o surgimento do computador. Para ele, foi essa “caixinha” a culpada pela frieza do jornalismo atual: “Hoje não dá mais emoção, você digita, digita e não acontece nada, não cai o tipo, não funde a linha”. Ele tem saudades de todo o valor da prática jornalística, a luta dolorosa e diária para fechar cada página, cada edição, e a verdadeira “confraria” que virava a redação nas horas de fechamento, onde um batalhão de gente se esmerava para imprimir o mundo nas páginas do jornal e conceber um filho de vários pais: “Dava trabalho, era muito sofrido, mas até quando eu via o jornal enrolado no peixe dava orgulho”.

Pegando na “raiz do problema”, como brinca ele, Nelinho começou no Jornal A Notícia aos 11 anos, vendendo jornais, depois passou a entregador. Por causa do fascínio pela linotipia, virou ajudante, limpava as máquinas, sempre olhando os outros trabalhar: “Certo dia, um dos linotipistas, já sabendo do meu interesse, me deu duas provas para arrumar. Eu emendei aqueles dois erros e fiquei contente. Dali para frente, comecei”. Nesse período, cinco máquinas executavam a produção do A Notícia. No comando de uma delas, seu Nelinho.

Linotipista competente, ele passou por vários jornais, trabalhou no extinto Jornal Joinville, no Jornal Tomelim em Blumenau e no A Nação. Porém, foi no Rio de Janeiro que entrou para um dos grandes jornais do país. Empregou-se no Diário da Noite, de Assis Chateaubriand e, em seguida, no jornal O Globo. “O Globo era muito difícil, tudo apadrinhamento. Então surgiu a chance de um bico. Se faltava um, o biqueiro fazia o serviço, e assim eu fui ficando. Não parava em jornal nenhum. Ofereciam coisa de cinco reais a mais e eu já saía”, conta.

Seu Nelinho não por quanto tempo passou no Rio de Janeiro, mas recorda com saudade as noites em claro compondo páginas, as horas gastas na composição das linhas, o desafio que era fechar todos os espaços numa página e a satisfação em ver seu trabalho finalizado na mão de algum leitor, sentado na mesa de um café qualquer.

Os olhos brilham ao recordar alguns episódios. Ele se orgulha de ter produzido jornais históricos, como a edição da morte de Getúlio Vargas, em 1954, quando atravessou a madrugada compondo as matérias com aquela notícia que traria tanto impacto para o país. Ou de quando precisou esperar o resultado do concurso de Miss Brasil que elegeria Vera Fischer a nova musa brasileira. Histórias de um homem que viveu intensamente nas redações durante um período de ditadura, e foi por várias vezes interrompido na gráfica pelos soldados da repressão.

Para sempre na história

As máquinas sempre duraram mais que os homens. Esta é uma verdade infalível. Ao longo de toda a vida, cada um de nós é responsável pela direção de uma locomotiva: o trem da vida. Algo que embarcamos só uma vez e quando descemos temos a chance de conferir o que durante toda essa viagem maluca, repleta de altos e baixos, conseguimos agregar pelo caminho. Amores, amizades, lembranças, histórias, momentos felizes, outros nem tanto, lembranças da resignação nos momentos de dificuldade e das profissões que com tanto afinco exercemos.

Durante o período em que confeccionava essa matéria, seu Nelinho, depois de mais de sete décadas de viagem desembarcou. Ele chegou ao seu destino e pôde ver os vagões carregados de histórias e lembranças. Repletos de jornais, tipos e máquinas, com as quais tinha convivido pelas redações que passara no país. Um gráfico com coração de jornalista. Alguém que via na linotipo uma forma majestosa de levar a vida. Uma pessoa que decididamente não deveria ter partido agora.

O último vagão de seu Nelinho estava por encher. No seu interior, somente a imagem de uma sala envidraçada, onde bem ao centro ficaria a sua linotipo. Um jaleco branco e muitos tipos com os quais ele administraria a primeira oficina do Ielusc. Quis o destino que esse pedaço da história não se concretizasse. Seu Nelinho morreu em 5 de junho de 2004, na sua casa, vítima de complicações no coração e pulmão.

Esse foi um pedaço da história que seu Nelinho não pôde viver, mas vai acompanhar onde quer que esteja. Alinotipo virá para o Ielusc. Ela será colocada na oficina que está sendo construída e levará o nome dessa brilhante figura do jornalismo brasileiro. O Ielusc será o templo onde o jornalismo, a história e o talento continuarão vivos a cada tipo forjado em chumbo e estanho produzidos pela máquina de Seu Nelinho.


Matéria originalmente escrita para a revista Primeiros Ensaios, uma publicação acadêmica produzida no segundo semestre de 2004.

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