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Matéria 4341, publicada em 17/05/2007.


:Jouber Castro

Jaison anima os exercícios na fisioterapia

Caminhoneiro dá aula de otimismo e presença de espírito

Jouber Castro


Fisioterapia não é algo muito agradável. Normalmente. Porque os pacientes da clínica CRV, no América, discordam desse ponto de vista. Por um único motivo: Jaison Belarmino, 27 anos. “Do lado dele sempre é bom fazer fisioterapia. É uma piada atrás da outra, ele não pára!”, diz o jogador de basquete Shilton do Santos, que se recupera de uma lesão no joelho. Jaison é o tipo de pessoa que se daria bem em qualquer ambiente. Não por habilidades no trato com as pessoas, mas sim por uma presença de espírito que não se costuma encontrar.

Na sala de exercícios há uma unanimidade: Jaison é uma figura. “Sou assim desde sempre. Quando eu era guri, comia cacos de vidro”, diz o caminhoneiro, provocando riso em todos. “É verdade. Eu era um ‘demonho’! Mas o que eu queria mesmo era ser caminhoneiro”. Nascido na maternidade Darcy Vargas, diz que, quando criança, chegava a faltar nas aulas para viajar no caminhão de seu pai, acompanhando. Não deu outra: quando era adolescente, já dirigia para que seu pai pudesse descansar. “O pai olhava no mapa onde tinha um posto da polícia rodoviária, localizava o último posto de gasolina anterior e me dizia: ‘Você vai parar lá’”. Esse costume fez com que Jaison virasse caminhoneiro com 18 anos, dirigindo um graneleiro. Nessa época, entre os vários lugares do Brasil que conheceu, o mais distante foi a cidade de Cerejeira, no estado de Rondônia. Em 1997, começou a fazer o roteiro de Goiânia a São Paulo. No ano seguinte, foi contratado pela Transville, e morou alguns meses em São Paulo. “É sério, cara, eu morava na favela! Chamava Parque Novo Mundo”, relembra, sorrindo pela primeira vez.

Foi nessa época que aconteceu um dos episódios que pode explicar melhor quem é esse Jaison Belarmino. O armazém da transportadora em que trabalhava, em Guarulhos, estava sendo assaltado por vinte homens, cada um usando uma roupa diferente. “Nunca vou esquecer de um baixinho que estava usando roupa de basquete”. Os assaltantes, com armas pesadas, obrigaram todos os motoristas e carregadores a encherem os caminhões com a carga que estava no armazém. Quando estavam quase terminando, os ladrões encontraram um bolo de notas de dez reais no escritório da transportadora, e começaram a distribuir uma nota para cada um dos funcionários. “Eu estava carregando um rolo de papel prum caminhão, e o cara me deu dez reais. Quando estava voltando, um outro cara me perguntou se eu já tinha pego o dinheiro, e eu disse que não. Ele falou: ‘Tu já pegou, cara!”, e eu disse de novo que não. Aí ele me deu mais dez. Fiquei com vinte pila”.

Cachorro do mangue

Um dia, no pátio da transportadora, já de volta a Joinville, alguns caminhoneiros que havia passado da conta na cerveja começaram a brigar, como acontecia freqüentemente, no horário de almoço. Jaison dormia na boléia do seu caminhão, e quando ouviu o barulho, foi ver o que estava acontecendo. “Eu cheguei perto e me acocorei pra assistir a briga, do jeito que eu tinha vindo do caminhão mesmo. Um dos caras que estava brigando me viu e gritou: ‘Oh, lá o Jaison, todo descabelado, parece um cachorro do mangue!’”. Todos começaram a rir e caçoar, paralisando a briga. Jaison não gostou. Talvez por causa disso o apelido pegou, e persiste até hoje.

Quando perguntam a Jaison se ele gostaria de fazer alguma outra coisa que não seja ser caminhoneiro, ele responde: “Não, cara. Não sei fazer mais nada. É só isso que eu sei fazer, é o que eu sempre fiz”. Porém, fazer o que mais gosta novamente vai ser difícil para o Cachorro do Mangue. Na madrugada de 24 de fevereiro de 2006, por volta das 3h40, Jaison subia uma serra no interior de São Paulo carregado. Numa imprudência de outro caminhoneiro, que tentou forçar a ultrapassagem na descida, acabou atingido em cheio, de frente, sem nenhuma chance de reação. Ficou com as duas pernas presas às ferragens. “Não senti dor em momento nenhum. Só senti uma fraqueza muito grande, por causa do sangue que eu estava perdendo. Tudo parecia um sonho, só que dessa vez eu não conseguia acordar”, descreve. Depois de ser levado para São Paulo, ficou cinco dias em coma. O saldo final foram algumas costelas quebradas, parte do pé esquerdo amputado, uma lesão de ligamento cruzado no joelho direito, e a perda de todos os ligamentos do esquerdo, que foi esmagado. Mas se alguém acha que isso desanimou o caminhoneiro, está enganado. Quando estava na UTI, em São Paulo, sua esposa, Fernanda, foi chamada às pressas do trabalho para viajar e encontrar o marido, sem tempo para tirar o uniforme. “Quando ela chegou, eu estava com todos aqueles aparelhos, tinha acabado de sair do coma. Só virei a cabeça pro lado e disse: ‘Pô, Fernanda, veio com o uniforme completinho, hein?”.

Jaison realizando os exercícios

Passados um ano e três meses do acidente, Jaison ainda anda com o auxílio de um andador. Em torno da perna esquerda, barras de metal que ele chama de “churrasqueira” servem para fixar a articulação e auxiliar na cicatrização dos ossos atingidos. Na fisioterapia, alterna caretas de dor com brincadeiras freqüentes, para deleite dos seus companheiros de recuperação. “Ô, Felipe, quanto tu cobra pra assombrar o shopping Mueller?”, pergunta ao estagiário. Logo após as risadas, a recepcionista da clínica vem perguntar a Jaison qual havia sido a sua última seção. “Ô, Jaison, quando foi a tua última vez?”, disse, não se dando conta do duplo sentido da pergunta. “Pois é...”, respondeu o piadista, ao som da gargalhada do fisioterapeuta. Logo depois alguém lhe pergunta: “E a tua primeira vez?”. “Primeira vez do que? Ah, tá... Quatorze anos. Foi num caminhão”.

Mas Jaison não é famoso só na clínica. Na agência bancária onde tem conta, no centro de Joinville, todos o conhecem também. “O porteiro me perguntou o que tinha acontecido comigo quando viu a ‘churrasqueira’. Eu disse que estava saltando de pára-quedas, mas ele abriu muito tarde. Ele disse ‘meu Deus!’”, conta, levando as mãos à cabeça imitando o funcionário do banco. “E eu falei também que demoraram quatro horas pra me encontrar”. Na conclusão da entrevista, Jaison é perguntado se sua visão de mundo, e da própria vida, mudou após o acidente. “A vida pra mim é a mesma. Só não dou chance pro azar”.


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