O assassinato da pequena Gabrielli Cristina Eichholz, de um ano e meio, na manhã de sábado (3/3), vítima de abuso sexual e estrangulamento no interior de uma igreja evangélica, em Joinville/SC, confirma uma regra maldita e geral: a espiral de violência parece um poço sem fundo. A cada tragédia tem-se a sensação que a sociedade fica mais embrutecida, entre o desamparo da impunidade e a impotência da falta de saídas imediatas. Nenhuma palavra é capaz de qualificar tal crime: é indizível, hediondo, bestial.
Nesse contexto delicado e grave, destaco o papel da imprensa. Na cobertura do assassinato de Gabrielli aparecem os pontos frágeis da mídia contemporânea. Entre abordagens sensacionalistas e exploração torpe, a mídia segue sua sina de superficilidades, no limite dos clamores difusos de vingança, ódio e justiça com as próprias mãos, com raras exceções. Um certo tipo de imprensa que vive à cata dos chamados “furos de reportagem” está, a cada dia, banalizada com a concorrência de “uma infinidade de novos meios de comunicação, da Internet à TV a cabo”, como analisa o jornalista Luís Nassif. Para ele, a notícia virou um produto ao qual precisam ser “agregados” os valores da análise, da contextualização e do acompanhamento metódico.
A reportagem de capa da revista CartaCapital (“Ladrões à solta“, em 7/3/2007) é uma boa referência dessa ampliação dos sentidos da cobertura jornalística, na clara intenção de fazer com que leitores/ouvintes/telespectadores e internautas possam compreender algo mais que o factual. O texto do jornalista Leandro Fortes (“A salvação do crime”) descreve e interpreta a “luxuosa” contribuição do Supremo Tribunal Federal (STF) à luta contra a criminalidade, à corrupção. Em sessão realizada no dia 1º de março, o plenário do STF “havia se reunido para decretar o fim” da Lei de Improbidade Administrativa, tido como o “mais eficaz expediente jurídico criado em 1992 contra a corrupção no Brasil”. Mais de 10 mil processos seriam extintos para alívio de políticos corruptos, do Oiapoque ao Chuí. Em paralelo, tramita no Congresso Nacional projeto de lei com a mesma finalidade: pulverizar a Lei de Improbidade. Trata-se de inequívoca “contribuição” da mais alta corte do judiciário e do parlamento à cultura da impunidade, um dos problemas centrais da violência sem fim.
Na mesma edição, a revista aposta na análise da problemática mundial e traz oportuna entrevista com o economista Ladislau Dowbor, que prevê a ocorrência de “tsunami social”, em escala planetária, caso o rumo do desenvolvimento econômico ditado pela mundialização financeira não seja sensivelmente alterado.
Para além da perplexidade, reações intempestivas guiadas tão-somente pelos sentimentos de ódio e vingança tendem a transformar o palco da mídia num estéril e catártico exercício do senso comum, da incitação a novos crimes. Nesse lusco-fusco reinam soberanas saídas simplórias e ineficazes, como jogar a culpa nos governos, na frouxidão da lei, na televisão, na escola, nas igrejas etc. Há uma singela indagação que me parece fundamental: nosso modelo de sociedade e de civilização fracassou?
Segundo o economista Ladislau Dowbor (PUC, São Paulo), o cenário global agrava o problema: “Financeirização, fome, escassez de recursos naturais, aquecimento global”, às quais incluo a questão energética, guerras, terrorismo e fundamentalismo (religioso e de Estados, como os EUA) tudo isso radicaliza o aumento das desigualdades e acelera rupturas ambientais.
Os novos tempos de comunicação global exigem um reposicionamento da imprensa. Nassif aponta um caminho: “A nova etapa exigirá um jornalismo mais sofisticado e plural, capaz de julgar situações, não personagens, de ser contra ou a favor de atos de governo – não contra e a favor de governos -, de aceitar e compreender que interesses setoriais podem ser legítimos”.
Uma questão tão complexa como a violência não admite saída única, como a redução da idade penal. No nível que o problema está posto talvez só um vigoroso movimento cívico, que envolva o conjunto das forças sociais, pode produzir as mudanças necessárias em termos políticos, sociais, econômicos, culturais e penais.
O historiador Denílson Botelho oferece uma convicção: “Reverter esse processo levará alguns anos, quiçá décadas. E que ninguém se iluda com soluções mágicas, ainda que alguns programas de TV insistam em transformar tudo isso num circo”.
*Jornalista, doutor em mídia e teoria do conhecimento pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e coordenador do curso de jornalismo do Bom Jesus/Ielusc. E-mail: samuca@ielusc.br