É da lavra do jornalista Luís Nassif a análise: “Em fins dos anos 1960, a imprensa descobriu o jornalismo econômico. No início dos 70, o de negócios. No fim dos 70, o jornalismo crítico. Nos anos 80, o de serviços. Nos 90, o denunciatório. Nos anos 2000, falta à imprensa se descobrir”. Quando se trata de cobrir temas complexos, a crise de identidade do jornalismo transparece sem pejo. É o caso do tema “violência”, suscitado pelo brutal assassinato do menino João Hélio Vieites, no Rio de Janeiro.
Dois intelectuais de renome internacional, Renato Janine Ribeiro (da Universidade de São Paulo) e Andrea Lombardi (da Universidade Federal do Rio de Janeiro), protagonizaram um debate lapidar. Janine Ribeiro publicou o texto “Razão e sensibilidade”, no caderno “Mais” (jornal “Folha de S. Paulo”, em 18/02/2007) e Lombardi fez um contraponto (“A razão distorcida”) às idéias centrais do filósofo, no mesmo periódico (em 25/02/2007).
Janine Ribeiro escreve: “Se não defendo a pena de morte contra os assassinos, é apenas porque acho que é pouco. Imagino suplícios medievais, aqueles cuja arte consistia em prolongar ao máximo o sofrimento, em retardar a morte. Torço para que, na cadeia, os assassinos recebam sua paga”. O filósofo abre mão de qualquer atitude reflexiva, professa sua total submissão ao senso comum, num artigo que é uma incitação ao crime.
Por sua vez, Andrea Lombardi discute o papel do intelectual na sociedade: “Apontar para um caminho que é contrário ao corriqueiro e ao banal. (...) A sensibilidade e a razão devem estar a serviço de uma leitura nova e original, que defenda e abra sempre mais novos espaços de liberdade”. Ele acredita que “a violência crônica e brutal contra o pobre menino é provavelmente expressão de uma doença crônica, que convive com essa sociedade contemporânea, em suas entrelinhas ou em suas entranhas”. Lombardi finaliza defendendo: “Contra a violência, a pena de morte, contra corrupção que autoriza descrença, desengajamento, hipocrisia e cinismo, é necessário retomar uma atitude inconformada”.
Valho-me desse diálogo para refletir também sobre o papel da mídia, considerando a premissa de Nassif. A filósofa Viviane Mosé vê os excluídos como seres “transparentes”. O “transparente” é um ser “in-visível” aos olhos e olhares da sociedade. Ora, logo é também alguém que não tem nenhum compromisso com a paz social e vive em um estado de liberação de instintos, para além da imaginação. A cobertura desse tipo de assunto deveria passar ao largo do maniqueísmo vulgar, que simplifica e impede a reflexão criadora. Não é o que se vê, com lamentável freqüência. As comunidades só são “manchetes de jornal” na hora da desgraça. A luta diária de muita gente boa (cidadãos e cidadãs anônimos, igrejas populares, ONGs, entes públicos etc.), na construção de uma outra vida, não é notícia – seguindo a máxima bovina de que “boa notícia não é notícia”, criada pela “objetividade” da escola americana.
As “saídas” emanadas das próprias comunidades massacradas, como nos exemplos da Central Única das Favelas, CUFA (www.cufa.com.br), da Cidade de Deus, o Afroreggae (www.afroreggae.org.br), de Vigário Geral, no Rio, representam esse gesto simbólico, ainda que nas “sombras” da mídia. Quem sabe, pautando e garantindo o debate público sobre iniciativas dessa natureza em todo país, a mídia não estaria se re-inventando, neste começo de século 21.
(*) Jornalista, doutor em mídia e teoria do conhecimento pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e coordenador do Curso de Jornalismo do Bom Jesus/IELUSC. E-mail: samuca@ielusc.br