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Matéria 3690, publicada em 23/02/2007.


A mídia tem “memória” curta

Samuel Lima*


A tragédia com o Boeing da Gol, que matou 154 pessoas, no final de setembro de 2006, está nas manchetes outra vez. O assunto volta a ser notícia e a mídia nos oferece mais um bom exemplo de como a arte da edição pode contribuir, decisivamente, para desinformar a sociedade.

O jornal “Folha de S. Paulo” (de 18/02/2007) traz como matéria de capa: “Fitas revelam erros na queda do avião”. Três páginas do caderno “Cotidiano” são dedicadas à pauta, suscitada pelo acesso do diário paulista às transcrições das conversas dos pilotos do jato Legacy, Joe Lepore e Jan Paladino, e de controladores brasileiros.

A reportagem de Eliane Cantanhêde joga com a tese de que “uma sucessão de erros e mal-entendidos” explicaria o desastre. Para os controladores de Brasília o adjetivo é “displicente”; quanto ao desconhecimento dos pilotos norte-americanos acerca dos procedimentos de rotina do jato a palavra é “desconforto”. Os dados da “caixa-preta” desnudam dois erros fatais. Um: O transponder/localizador (TCAS) estava desligado e foi percebido três minutos após a colisão. Outro: os pilotos assumem não saber operar o sistema que gerencia os dados do vôo, como altitude e rota, o chamado FMS (flight management system). Por fim, uma verdade inconteste: os pilotos americanos tinham decidido seguir uma rota à revelia do plano de vôo, que os mandava voar a 36 mil pés após Brasília, e não nos 37 mil, espaço exclusivo do Boeing, que voava de Manaus para Brasília.

O “Fantástico” (TV Globo), do mesmo dia, repercutiu o fato novo. Os trechos da conversa selecionados responsabilizam tão-somente os controladores de vôo brasileiros e autoridades do setor. A reportagem diz que os pilotos americanos tiveram “dificuldades com equipamentos”. O texto aponta, no máximo, alguma “confusão” na cabine de comando do jatinho. A repórter Délis Ortiz “ignora” a confissão dos pilotos quanto ao desligamento do transponder, bem como o fato de não estarem habilitados para operar aquele tipo de equipamento. Sua conclusão é natural: foi “ouvir” a Aeronáutica, ao invés de Paladino e Lepore.

Uma informação aparece “jogada” entre dezenas de parágrafos, fotos e infográficos: “Conforme a Folha apurou, os investigadores aeronáuticos trabalham com a hipótese de um dos dois, Lepore ou Paladino, estar com um laptop aberto no colo, com a tampa escondendo a parte do painel onde se encaixa o transponder”.

O que mais chama a atenção nesse tipo de caso é a extrema dificuldade da mídia admitir seus erros, saliências e omissões, enfim, mostrar algum grau de “memória”. Na opinião do jornalista Paulo Henrique Amorim “a imprensa brasileira e americana desempenhou até aqui um papel importante: dirigir a responsabilidade aos brasileiros incompetentes e relevar a falha dos eficientes americanos”.

Em suma, o relatório da conversa no comando do Legacy indica, com clareza: (1) O transponder, que evitaria o choque estava desligado; (2) Os dois pilotos não sabiam operar o sistema de gerenciamento de dados do jatinho; (3) Paladino e Lepore descumpriram o plano de vôo. Erros fatais, que custaram 154 vidas.


*Samuel Lima é doutor em mídia e teoria do conhecimento pela UFSC e coordenador do curso de jornalismo do Bom Jesus/ Ielusc.

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