O programa “Bom Dia Brasil” (TV Globo, edição de 02/02/2007) ofereceu aos interessados na reflexão sobre a mídia e seu papel na sociedade, especialmente em sua interação com o campo da política, mais um exemplo lapidar.
Trata-se da “não-entrevista” realizada pela jornalista Cláudia Bomtempo, âncora do programa em Brasília, com o novo presidente da Câmara dos Deputados, Arlindo Chinaglia (PT-SP). O colunista Alexandre Garcia também participou do estranho diálogo. Selecionei alguns trechos para uma brevíssima reflexão.
Para começo de “conversa”, Cláudia abre acusando: “O senhor foi o único que defendeu o aumento de 92% dos salários dos parlamentares e a equiparação com o Supremo Tribunal Federal. O senhor vai manter essa promessa como presidente da Câmara?”. Chinaglia, rebateu de bate-pronto: “Primeiro uma correção. Não é verdade que eu defendi o aumento de 92% durante a campanha. Eu inclusive deixei isso por escrito no meu programa, disse que seria pela reposição da inflação”.
A jornalista da Globo mantém o raciocínio que dominou toda a cobertura da chamada crise política (a partir de maio de 2005) até o período eleitoral de 2006: a presunção de culpa. Ou, na expressão precisa de Luis Nassif: “Atire primeiro, pergunte depois”.
Demonstrando uma precária preparação (pesquisa, organização de informações prévias sobre o assunto e o entrevistado), Cláudia interrompe um raciocínio de Chinaglia, no qual o deputado discutia a necessidade de se fixar um teto salarial, do ponto de vista dos três poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário): “Não acho correto um ministro do Supremo ganhar praticamente três vezes o salário do presidente da República”. Ela volta a acusar: “Na prática, isso é um aumento de 92%...”. Chinaglia, serenamente, devolve a “pergunta” ao dizer que aquela era a visão da jornalista: “Quando eu disse que o teto deva ser o do Legislativo, eu não disse qual seria o valor. Você está se antecipando”.
E faz a pergunta fatal: “Você sabe quanto ganha um juiz em início de carreira no Brasil inteiro? Você sabe?”. Constrangida, a jornalista desconversou: “Essa não é a questão agora...”. O deputado paulista arrematou: “Estou te usando para provar que nem você, que é uma pessoa bem informada, sabe quanto é o salário de 25 mil servidores do país”. Ora, se o fundamento da famigerada proposta de reajuste de 92% era a equiparação dos salários de parlamentares aos dos ministros do Supremo, a jornalista não poderia estar desinformada sobre o assunto.
A pesquisadora Annette Garrett, em sua obra “A entrevista, seus princípios e métodos”, discute a necessidade de os profissionais do jornalismo ampliarem sua visão sobre as técnicas de realizar uma boa entrevista. O diálogo a ser construído em uma entrevista, para Garrett, deve ser, acima de tudo, “a arte de ouvir, perguntar, conversar”.
E não deveria importar se o entrevistado é o mais humilde cidadão ou o presidente de um dos maiores poderes da República, como no caso do deputado Chinaglia. Cláudia Bomtempo não fez o “dever de casa” e ofereceu à sociedade um exemplo bem acabado de não-entrevista.
Cabe lembrar a pertinente observação do Prof. Albino Rubim (UFBa): “Em uma sociedade democrática, o jornalismo tem uma tarefa altamente relevante. Colocar em debate e discutir os grandes temas, ouvindo as mais diferentes opiniões políticas e segmentos sociais, ajudando a construir uma opinião pública sobre os assuntos mais significativos da vida social. (...) Quando se afasta desta atitude, socialmente reconhecida e legitimada, o jornalismo corre grave perigo e perde sua precípua função na sociedade. Ele se contamina por interesses contrapostos aos públicos, passa a ser um mero instrumento ideológico e perde sua legitimidade social”.
Dos quatro noticiosos da TV Globo (além do “Bom Dia”, Jornal Hoje, Jornal Nacional e Jornal da Globo), o telejornal da manhã tem sido o “laboratório” privilegiado para o exercício do protagonismo antidemocrático daquela emissora. Ali, os discursos editoriais se misturam às notícias, num flagrante desserviço ao interesse público.