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Matéria 3558, publicada em 05/02/2007.


Fina ironia dickensiana

Tiago Luis Pereira

O Sr. Pickwick é um cara gente fina na mais radical das acepções da expressão – quase me arrisco a dizer que o é em todas as acepções. Sujeito de extrema dedicação ao próximo, natural e impecável polidez, além de argúcia científica comprovada e reconhecida (ver seu ensaio intitulado “Especulações sobre a Origem das Lagoas de Hampstead, com Algumas Observações sobre a Teoria dos Girinos”, que causou certo alvoroço no meio científico londrino). Fato comprovante da distinção de caráter desse homem é o cargo que exerce (o de presidente) com notável desvelo no clube voltado para a observação de caracteres, costumes e curiosidades do universo humano e que leva seu próprio nome no título, o Clube Pickwick. Composto de sujeitos de caráter igualmente distintos e que vêem na figura de seu presidente, além da autoridade máxima do clube, um exemplo de honradez e conduta nas mais diversas situações cotidianas, o Clube Pickwick proporcionou, nos anos de atividade, aventuras memoráveis e de infinita riqueza humana para seus membros e, principalmente, para o seu orgulhoso presidente-fundador.

O criador dessa personagem cativante é um jovem inglês, nascido em 7 de fevereiro de 1812, de nome Charles Dickens, que logo aos 24 anos de idade deu mostras do futuro literário brilhante que lhe aguardava. “As Aventuras do Sr. Pickwick” nasceu como uma série a ser publicada semanalmente no jornal em que o autor trabalhava. A idéia era simples e baseava-se em outras séries que haviam alcançado sucesso anteriormente na editora do jornal: fazer o público rir, chorar e aguardar o próximo capítulo. No entanto, a vendagem e a aceitação do público iam algo insatisfatórias e o autor decidiu incrementar a trama com a introdução de mais uma personagem. Surge então, no décimo segundo capítulo, um tal Sam Weller, que cai de pára-quedas na história para acompanhar o protagonista nas suas aventuras meio ao modo Quixote/Sancho. Deu certo: das singelas centenas de exemplares, a vendagem salta para a casa das dezenas de milhares e Charles Dickens consolida-se como um jovem escritor de sucesso, faz fortuna e prepara o terreno para gravar seu nome no cânone da literatura mundial.

A edição completa, contendo os 57 tomos publicados, com quase seis centenas de páginas, apesar de não contar com as ilustrações dos originais que ajudavam a dar sustentação cômica para a trama, demonstram porque Dickens conseguia conquistar tantos leitores fiéis e ávidos pelo desenrolar dos enredos. Sem perder o fio condutor da história, constam nas páginas de “As Aventuras do Sr. Picwick” inúmeros retratos bem construídos de figuras humanas e de costumes da época temperados com laivos de crítica voltada principalmente ao discurso cientificista vigente. Mas o aspecto que torna a série, apesar de longa, incrivelmente atraente é o tom picaresco que permeia todos os capítulos.

Segue um trecho do capítulo 37, em que o criado do Sr. Picwick (o famigerado Sam Weller) é chamado ao tribunal para depor a favor de seu amo, o réu:

- Lembra-se de alguma coisa especial que tenha acontecido na manhã em que foi empregado pelo réu, hein, Sr. Weller? - perguntou o Dr. Buzfuz.

- Lembro-me sim, senhor – tornou Sam.

- Tenha a bondade de dizer aos senhores jurados o que foi.

- Ganhei nessa manhã uma roupa nova, senhores jurados – contou Sam – e isso, naquela ocasião, foi para mim uma circunstância muito especial e fora do comum.

A estas palavras seguiu-se uma gargalhada geral; e o juizinho, olhando, colérico, por cima da escrivaninha, disse: - É melhor que o senhor tome cuidado.

- Foi o que o Sr. Pickwick me recomendou nessa ocasião – respondeu Sam – e eu tomei muito cuidado com a roupa, Excelência; muito cuidado.

Mas “As Aventuras do Sr. Pickwick” não pode ser resumido (leia-se reduzido) em apenas um romance picaresco. A riqueza humana das personagens e das situações faz com que o leitor se sinta, de certo modo, um Pickwickiano (como eram altivamente chamados os membros do Clube Pickwick), pelo menos no que diz respeito ao interesse por “caracteres e costumes”.

800x600. ©2005 Agência Experimental de Jornalismo/Revi & Secord/Rede Bonja.