Em sua última edição, o programa “Fantástico” (TV Globo, 26/11/2006) apresentou um novo tipo de jornalismo: o que produz “quase-notícias”. À frente da empreitada o repórter Valmir Salaro, um personagem conhecido de uma das mais tristes páginas da imprensa brasileira: o caso da Escola Base, ocorrido em 1994.
Vamos ao texto para entender a “quase-notícia”: “Em junho de 2001, um MD-11 da Varig e um Airbus da Vasp quase se chocaram (sic) perto da cidade de Alta Floresta, no Mato Grosso”. O relatório sobre o incidente revelara “mais um caso de quase-colisão no ar (sic) sobre a Amazônia”.
A tese é que existe um ponto cego no espaço aéreo brasileiro onde caiu o avião da Gol. Para sustentar isto, o jornalista fez uma “reportagem” de fonte única, que por ser militar não poderia ser identificada. A Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) não foi ouvida, tampouco a Aeronáutica, autoridades do governo federal e empresas aéreas. Salaro ouviu sua fonte oculta e mostrou uma tela de computador como “prova que existe um enorme buraco negro nos céus do Brasil”. O entrevistado diz que os controles são obsoletos e que “não se sente seguro voando de avião”.
Os dados disponíveis no site da Anac indicam outra realidade: de janeiro a junho deste ano mais de 26 milhões de pessoas usaram os vôos domésticos no país. O número de acidentes até maio era 32; e 45 pessoas tinham morrido (até 30 de junho). Se o “caos” fosse realidade os números o denunciariam. Há outros veículos da mídia nessa “onda”.
Vejamos mais um caso recente: o assassinato do casal de aposentados, Sebastião e Hilda Tavares, no dia 17 de novembro, em São Paulo (SP). A mídia destacou a crueldade e, especialmente, a apressada conclusão do delegado titular da 23ª DP de que o filho do casal, o escrevente Rogério Gonçalves Tavares, seria o “principal suspeito”. Bastou a “suspeição” para Rogério ser transformado num psicopata capaz de matar os pais a facadas. Ele foi tratado pelos jornais de 18/11/06 como culpado, teve a casa pichada com mensagens ofensivas e ameaçadoras. Perfis publicados também davam conta de que ele poderia ser doente mental.
Dois dias depois, a polícia prendeu o assassino confesso – um vizinho da família. “Ao fim e ao cabo, a verdade é que a mídia comprou a versão apressada de um delegado – exatamente o mesmo roteiro do início da Escola Base. Bastaria um pouco de prudência dos jornalistas e o mal feito ao escrevente teria sido evitado”, critica o jornalista Luiz Antonio Magalhães.
O caso Escola Base ocorreu na Semana Santa de 1994. Seis cidadãos comuns (donos de uma escola de ensino fundamental, em São Paulo) foram vítimas da acusação de abuso sexual contra crianças. Suas vidas foram arrasadas, a escola depredada pela população, o negócio faliu. Quatro meses depois, um extenso inquérito policial provou que os casais Saulo e Mara Nunes, Icushiro e Cida Shimada, Maurício e Paula Alvarenga eram inocentes.
Lá estava outra vez Valmir Salaro, puxando a repercussão do caso no “Jornal Nacional” (29/03/1994), sem ouvir nenhum dos acusados. O jornalista Alex Ribeiro, em seu livro “Caso Escola Base: os abusos da imprensa”, relata que Salaro testemunhou uma sessão de tortura, física e psicológica, aplicada a quatro dos seis acusados. Depois, cunhou o selo que os acompanharia pelo resto de suas vidas: os donos da “escolinha do sexo”. E continua na telinha, fazendo seu quase-jornalismo e colocando em risco reputações, imagens, negócios, vidas.
Samuel Lima é doutor em mídia e teoria do conhecimento pela UFSC e coordenador do curso de jornalismo do Bom Jesus/ Ielusc.