Revi Bom Jesus/Ielusc

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Matéria 3370, publicada em 20/11/2006.


Curvas da cidade


Só vi ângulos retos. Nas ruas. A cidade virou um feixe de retas paralelas, incongruentes e péssimas. Não há mais curvas. Homens de amarelo retorceram avenidas, deixaram-nas sem mistérios, sem segredos, sem escondiduras, sem dobras. Estes homens, e outros ainda, estão sem tempo para arquitetar esquinas, fazer curvas e brincar de adivinhar o que se abstrai nas sinuosidades das vias. Miméticos, os amarelos escolheram a reta, pois não sabem mais manusear astrolábios e sextantes. Perderam a atração pelas adjacências, pelos cantos, pelos becos, pelos contornos mais ousados. Mas continuam desorientados, não sabem onde querem chegar e estão sempre atrasados para compromissos inúteis. Uma cidade sem curvas é um deserto sem labirintos de areia nem miragens de sol. É uma infra-estrutura de descaminhos.

Retas são caminhos de cavalos. Os homens se adaptaram bem, mas os automóveis continuam a violentar os postes. A geometria do auto-engano tem conseqüências não-aritméticas. Cavalos estão longe de sofrê-las, o que não se pode dizer de seus semelhantes amarelos. A morte – um ângulo raso – faz morada em retas. Ela atravessa, mas é incerto o instante que vai cruzar a rua. Curvas, no entanto, são esconderijos. De cobras, de ventos e de nuvens. Curva perigosa é um pleonasmo. O perigo é a alma da curva. Aceitá-la é dar vida ao desconhecido, ao segredo, ao improvável, aquilo que está exatamente à frente, mas não se pode dar conta de sua excentricidade: o risco. O risco de cobras serem serpentes, de ventos serem tempestades, de nuvens serem meninas. Os amarelos da pós-modernidade odeiam o risco. São covardes, donos de um medo retilíneo. Gosto mais dos cavalos.

Curvas nunca foram retas. Nasceram como tais. Morrerão como tais. Exceto estas que agora estão sendo retorcidas e forjadas pelos amarelos. Morrerão? Sim, infelizmente. A nova geração de carros já está vindo sem direção (com retas não há a necessidade de guinadas), assim como crianças já nascem cegas. Não haverá mais placas de sinalização, nem semáforos. “Siga reto, sempre”. Enfim, um mundo perfeito para mulheres. Um tabuleiro onde se joga a mediocridade humana. Moro numa curva. Gosto da bifurcação que ela sugere. Esta não morrerá. Enquanto houver uma curva no mundo, haverá possibilidades, potências de coisas que poderão ser. Retas são monótonas. Curvas são trajetos de Fênix.


O degelo da alma


Escurece os olhos e a mente vacila. Já não há desespero maior que a esperança tentando me abraçar. Escorre pelo rosto o suor de anos de trabalho, um ofício ignorado pelo outros, mas que me manteve em pé durante anos. Reclamavam da minha indecência, da minha inutilidade e do meu sorriso sempre adjacente a alguma ironia e nunca sincero a uma alegria fugaz. Não há alegria quando se sabe que alguém ainda morre de fome e de amor. E muitos ainda morrem gritando silêncios opacos e solitários. As celebrações atuais são todas alegrias fugazes, egoístas, um momento de engano feliz entre dias e dias cobertos pelo emplasto da exclusão e pela bebida forte da mentira.

Eu era flexível no começo. Na idade em que andar na praia não era um compromisso de fim de semana. No tempo em que os trens partiam cedo das estações. No tempo em que as ruas centrais eram as únicas pavimentadas e todas as pessoas que eu via eram, ou seriam, minhas amigas algum dia. Costumava abrir a janela domingo de manhã antes do sol sorrir ou da grama ser molhada pela chuva. Dispensava o café e o almoço e saia com os demais. Não havia interesses nem programações. Tudo acontecia com a soma de nossas ilusões, desejos e medos. Minha alma era uma jangada lançada ao mar, sem provimentos. E tudo à frente era impreciso, assim como a sombra das nossas solidões.

Os ventos contrários e as tempestades sem trovões me fizeram ver o mundo com menos harmonia. Não havia verdade nenhuma a buscar, nem sonhos a realizar. Não havia porque temer um amor improvisado ou porque obedecer as placas que colocavam nos corredores. Não há coerência no mundo. Ele é um casebre onde se amontoam ordinários brigando por pedaços ocos de madeira para roerem durante toda a vida. No meu desabrigo, todas minhas certezas e alentos foram congelados num ar exterior não menos barulhento que a queda das águas duma cachoeira escondida.

Enquanto o mundo escorre entre liberdades escoradas por leis inoperantes, cada vez mais eu me congelo na minha casa de blocos árticos. Não há mais princípios, nem erros, nem acertos, nem lugares, nem vontades, nem lutas. Só há igrejas, bares e canais de televisão. E pessoas desconhecidas que caminham lá fora. Minha respiração são vapores, minhas lágrimas, neve, meu corpo, pedaço de carne dura e resfriada. As pessoas não percebem mais minha face ruborizada. Se escondem do fantasma que sou. A agulha atravessada debaixo da unha do dedo indicador é o manifesto da agonia alheia pela minha inoperância, meu protesto gelado. Meu sangue não jorra, congela, diante de todas as indiferenças e escusas mal-arranjadas.

A alma precisa respirar. Espero o sol de um daqueles domingos passados, embora eu prefira descongelar sob a chuva. A alma precisa degelar, pois nenhum sentimento deve ser mantido congelado por muito tempo. Não quero experimentar o que seja um sentimento rebelde, explodindo o espírito e rasgando o corpo, num movimento frenético de desencontro ao mundo e a mim mesmo. Aos poucos vou abrindo os olhos, diante da necessidade de renovação, resignado diante da natureza e seus ciclos. Amo e odeio a chuva. Amo e odeio o sol. Amo as mulheres e odeio os homens. Odeio as festas de quem não tem fome. Odeio as calçadas da minha cidade. Durmo e respiro. E sonho. E envelheço. Enquanto o mundo confecciona a moda do próximo verão. Enquanto a alma degela.


Quem somos antes do amanhecer


Ninguém passa por mim. Obrigo as pessoas a darem a volta no quarteirão. A passarem de largo, a metros de distância. Temem que eu desabe sobre elas e se atrasem para o trabalho. O medo faz da gente uns velhos que desconfiam até mesmo do vento parado na calçada. Admiro a criança que invade canteiros, pula cercas e arrebenta barragens. Mas crianças estão livres para brincar somente à tarde. Eu ponho limites a essas ruas. Domino os semáforos, as placas, os estacionamentos, os bares, as varandas. Determino entradas e saídas. Alvarás para o mundo. Eu divido a cidade e suas rotinas, suas éticas, suas perversões. Veja como é fácil manipular as pessoas: nada além de cimento, areia, tijolos e musgo. E um pouco de água pra não dizer que não sou flexível.

Dividindo a manhã: muro. Fronteira entre o ontem desprezível e o acordar pela metade. Como se divide o tempo em minutos, segundos e respirações, desunidos somos em sentir, pensar e agir, embora cabeça, tronco e membros estejam ligados por nervuras encadernadas à carne. Abandonei na madrugada insalubre a boa vontade de viver a vida como se ela requeresse isso de mim. Como se fosse um dever seguir a luz que se alumia atrás de montanhas brilhantes, condenando as trevas deixadas (senão feitas) por minhas mãos ainda sem furos, as mesmas que agora estão no bolso, mas que geralmente se ocupam de quebrar lâmpadas ou pagar passagens de ônibus. A minha perna direita convenceu a esquerda para atravessarem a rua, juntas. Penso que é preciso olhar para os dois lados antes de fazer isso. Numa esquina liquefeita em desacordos, raramente existem ruas, no máximo, atalhos para desfiladeiros sem curvas. Guardo ainda essa prudência: mantenho os olhos abertos desde que nasci.

Parede. Cortina. Divisória. Alambrado. Cerca. Lamenta-se muito ter que partir. Deixar o descompromisso para trás. Deixar o sonho, a fuga e a felicidade. Deixar a loucura, os gritos, os passos incoerentes, os pulos sobre os arames. Há um dia a ser feito em horas. Uma hora repetida oito vezes. Talvez a chance de acinzentar-se ao meio-dia seja pequena, ou um aglomerado de fogos mate qualquer aceitação. Talvez um cão ladra saudando minha presença, mas logo se lembrará que não tem o direito de opinar. Já esqueci das vivências anteriores a esta data. Até lembro dos espinhos nos pés, mas agora não sinto dor nenhuma. Dizem que possuía segredos engavetados atrás de risos infantis, mas nessa época ainda não era vivo. Uma vida é assim: fósforo e circunstância, e nada além das 06h30min.

Somos divisão. Acordamos em pedaços sem sincronia. Árvores negam-me a sombra, enquanto somos esquartejados. Os assassinos estão livres e almoçam comigo. Um homem que vive de madrugadas carrega o machado roubado. Uns juntam-se em camas. Outros dividem cômodos e salários. Eu desmonto-me na noite, esmiuçando e ajuntado pedras para estancar uma hemorragia chamada aurora.

800x600. ©2005 Agência Experimental de Jornalismo/Revi & Secord/Rede Bonja.