Revi Bom Jesus/Ielusc

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Matéria 3368, publicada em 20/11/2006.


Terna Idade


Sempre que o tempo fresco chega, me dá a louca de querer tornar-me um chão de pedras brancas... um longo chão martelado com rochas retangulares e lisas e translúcidas... pedras desunidas umas das outras por uma tênue rota de cimento.

Sim, eu teria manchas de café amargo, seria trilhada por finas rugas que denunciariam não a minha idade, mas sim o desastre de uma xícara quebrada.

Então o vento frio se espreguiçaria pelas minhas costelas sem me arrepiar. De repente, um redemoinho gélido dispararia a minha respiração, mas, concentrando-me num cotovelo de sol espichado pela minha cintura, o terremoto estaria sob controle.

O tempo fresco chega e junto dele correm pés descalços. De manhã, estalariam pezinhos macios sobre meu ventre duro; de noite, pés calosos deslizariam nos meus olhos sonolentos – alguém fugiu da cama para consolar a fome ou tomar um remédio esquecido durante o dia. Na quietude da madrugada eu repassaria mentalmente os segredos que coletei na vigília. Cada sombra erguida na minha brancura guardaria uma confissão, um suspiro, um bilhete que vi passar de mão em mão.

Se eu fosse um longo chão de pedras brancas, jamais seria apenas um chão, seria o berço daqueles que escorregam no tapete e caem sem jeito. Seria a ponte daqueles que lamentam, sufocados, a areia movediça do mundo.

Não, eu não seria só um chão! Seria o caminho com pegadas para quem está perdido, ou esconderia as pegadas para os que precisam da solidão. Vem, eu sou o chão que aceita teus joelhos desabados em prece, o céu que se alarga perante teus olhos cabisbaixos, estou crucificada por mesas e cadeiras, céu que atrai lágrimas e contas de rosário e café escuro e melodias de dança e caminhos. Eu quero ser o abraço do mundo quando o tempo fresco chegar, quero dormir petrificada sobre a terra e sob a vida intensa, quero morrer vivendo para sempre, eu desejo a eternidade de um longo chão de pedras brancas nos dias frescos.



Em si mesmo


Naquela noite, todas as luzes do mundo apagaram-se, ou assim apenas pareceu o universo a Julia. Só os aquários da Praça Nereu Ramos tinham permissão para luzir.

Os peixes flutuavam como nuvens num céu de água. De quando em quando, flagravam-se trovoadas silenciosas em suas escamas. Este carrossel de monstros doces era a fria confirmação de que o ser humano é o mais obscuro abismo já cavado na pele do mundo.

Julia caminhava pela praça quando deparou-se com o aquário triangular. Era como a janela para um outono violeta, ou então o templo de uma pré-história violácea. Por entre setas fugazes, a moça vislumbrou um peixinho roxo, opaco e tímido. Lembrou-se que, em criança, ganhara um muito parecido. Certa manhã, Julia encontrara o peixe boiando de barriga para cima. Por ocasião de sentimentalismo ou rádio ligado, uma música do Oswaldo Montenegro marcara a perda. Durante muito tempo, a canção não deixou cicatrizar a rachadura da promessa de que sim, papai, vou alimentá-lo todos os dias. Outros bichos e outras canções e outras lágrimas vieram. Para fugir das recordações ressequidas, Julia escondia-se na treva das pálpebras e suspirava.

O maior aquário da praça era o universo de um único peixe. Julia sorriu ao imaginar que este animal fora tricotado vaidosamente com lã dourada pela natureza. Pestanejando de susto, a moça percebeu que o peixe era indiscutivelmente fêmea. Debutante em vestido amarelo, pesada com as rendas que a mãe lhe pendurou. Cata-vento de si mesma, cata-água, aurora de insônias, inquietamente mulher, tão pensamentos, tão humanidade, sim, tão humana e de uma incompreensão absurda! Peixe plenamente seguro de sua espécie e ao mesmo tempo maduro para assumir-se um papagaio ou uma sacola de pães. Se não fosse a maldita lei da gravidade prendendo-me a este chão, por Deus!, eu também seria feliz como esta criatura.

Difícil dizer por quanto tempo Julia permaneceu pensando. Durante três minutos ela desejou escuramente que suas mãos fossem barbatanas; a hipnose maravilhada estendeu-se por três semanas e nos três anos seguintes, Julia foi várias Julias, não necessariamente humanas. Três décadas depois, Julia Mendes seria uma ilustração em sépia no dicionário, ao lado da expressão ensimesmar-se.

Naquela noite, enquanto os peixes pisoteavam a dignidade dos humanos, Julia perdoava a matéria barrenta da qual tinha nascido. Perdoou também o frio cinzento, perdoou que suas barbatanas concretizassem-se apenas nos sonhos, perdoou os dias chuvosos e as mentiras e os muros da vida. Sobretudo, perdoou que os olhos de hoje fossem cegos para o que não se vê.

800x600. ©2005 Agência Experimental de Jornalismo/Revi & Secord/Rede Bonja.