Sempre que o tempo fresco chega, me dá a louca de querer tornar-me um chão de
pedras brancas... um longo chão martelado com rochas retangulares e lisas e
translúcidas... pedras desunidas umas das outras por uma tênue rota de
cimento.
Sim, eu teria manchas de café amargo, seria trilhada por finas rugas que
denunciariam não a minha idade, mas sim o desastre de uma xícara quebrada.
Então o vento frio se espreguiçaria pelas minhas costelas sem me arrepiar. De
repente, um redemoinho gélido dispararia a minha respiração, mas,
concentrando-me num cotovelo de sol espichado pela minha cintura, o terremoto
estaria sob controle.
O tempo fresco chega e junto dele correm pés descalços. De manhã, estalariam
pezinhos macios sobre meu ventre duro; de noite, pés calosos deslizariam nos
meus olhos sonolentos – alguém fugiu da cama para consolar a fome ou tomar um
remédio esquecido durante o dia. Na quietude da madrugada eu repassaria
mentalmente os segredos que coletei na vigília. Cada sombra erguida na minha
brancura guardaria uma confissão, um suspiro, um bilhete que vi passar de mão em
mão.
Se eu fosse um longo chão de pedras brancas, jamais seria apenas um chão,
seria o berço daqueles que escorregam no tapete e caem sem jeito. Seria a ponte
daqueles que lamentam, sufocados, a areia movediça do mundo.
Não, eu não seria só um chão! Seria o caminho com pegadas para quem está
perdido, ou esconderia as pegadas para os que precisam da solidão. Vem, eu sou o
chão que aceita teus joelhos desabados em prece, o céu que se alarga perante
teus olhos cabisbaixos, estou crucificada por mesas e cadeiras, céu que atrai
lágrimas e contas de rosário e café escuro e melodias de dança e caminhos. Eu
quero ser o abraço do mundo quando o tempo fresco chegar, quero dormir
petrificada sobre a terra e sob a vida intensa, quero morrer vivendo para
sempre, eu desejo a eternidade de um longo chão de pedras brancas nos dias
frescos.
Em si mesmo
Naquela noite, todas as luzes do mundo apagaram-se, ou assim apenas pareceu o
universo a Julia. Só os aquários da Praça Nereu Ramos tinham permissão para
luzir.
Os peixes flutuavam como nuvens num céu de água. De quando em quando,
flagravam-se trovoadas silenciosas em suas escamas. Este carrossel de monstros
doces era a fria confirmação de que o ser humano é o mais obscuro abismo já
cavado na pele do mundo.
Julia caminhava pela praça quando deparou-se com o aquário triangular. Era
como a janela para um outono violeta, ou então o templo de uma pré-história
violácea. Por entre setas fugazes, a moça vislumbrou um peixinho roxo, opaco e
tímido. Lembrou-se que, em criança, ganhara um muito parecido. Certa manhã,
Julia encontrara o peixe boiando de barriga para cima. Por ocasião de
sentimentalismo ou rádio ligado, uma música do Oswaldo Montenegro marcara a
perda. Durante muito tempo, a canção não deixou cicatrizar a rachadura da
promessa de que sim, papai, vou alimentá-lo todos os dias. Outros bichos
e outras canções e outras lágrimas vieram. Para fugir das recordações
ressequidas, Julia escondia-se na treva das pálpebras e suspirava.
O maior aquário da praça era o universo de um único peixe. Julia sorriu ao
imaginar que este animal fora tricotado vaidosamente com lã dourada pela
natureza. Pestanejando de susto, a moça percebeu que o peixe era
indiscutivelmente fêmea. Debutante em vestido amarelo, pesada com as rendas
que a mãe lhe pendurou. Cata-vento de si mesma, cata-água, aurora de insônias,
inquietamente mulher, tão pensamentos, tão humanidade, sim, tão humana e de uma
incompreensão absurda! Peixe plenamente seguro de sua espécie e ao mesmo tempo
maduro para assumir-se um papagaio ou uma sacola de pães. Se não fosse a maldita
lei da gravidade prendendo-me a este chão, por Deus!, eu também seria feliz como
esta criatura.
Difícil dizer por quanto tempo Julia permaneceu pensando. Durante três
minutos ela desejou escuramente que suas mãos fossem barbatanas; a hipnose
maravilhada estendeu-se por três semanas e nos três anos seguintes, Julia foi
várias Julias, não necessariamente humanas. Três décadas depois, Julia Mendes
seria uma ilustração em sépia no dicionário, ao lado da expressão
ensimesmar-se.
Naquela noite, enquanto os peixes pisoteavam a dignidade dos humanos, Julia
perdoava a matéria barrenta da qual tinha nascido. Perdoou também o frio
cinzento, perdoou que suas barbatanas concretizassem-se apenas nos sonhos,
perdoou os dias chuvosos e as mentiras e os muros da vida. Sobretudo, perdoou
que os olhos de hoje fossem cegos para o que não se vê.