De fato, no lado de cá tudo acontece antes. Foi assim com Patrícia Brustolin, 28
anos, operadora de telemarketing, e seu marido Fábio Arins, policial militar.
Eles passaram duas semanas internados no Hospital Infantil Pequeno Príncipe, em
Curitiba, junto da filha Beatriz Brustolin Arins, então com seis meses de vida.
Beatriz parecia uma criança desnutrida, com pernas e braços finos e uma
barriguinha bastante saliente.
Na primeira semana, foram quatro visitas a especialistas — neurologista,
gastro, endócrino e nefrologista — além da pediatra, que solicitou um check-up.
A bateria de exames diagnosticou doença nos músculos, provavelmente
degenerativa, porque os reflexos esperados pelo neurologista não haviam sido
atendidos. Inconformados com a resposta, os pais pediram que fossem repetidos os
exames.
Na segunda semana, a vontade de deixar o hospital só não era mais forte do
que a ânsia pelos novos resultados das mesmas análises com os mesmos médicos.
Foram 72 horas de angústia e espera. Já era fim de novembro de 2004 quando o
neurologista entrou no quarto para examinar Beatriz. Para a surpresa dos que a
acompanhavam, ela respondeu aos reflexos e todos os outros sintomas se afastaram
da última diagnose. Sem uma resposta precisa para a desnutrição de Beatriz, a
pediatra deu alta e disse que os veria na semana seguinte para acompanhamento.
Ficou para a próxima — e depois também.
Patrícia e Fábio voltaram a Joinville e levaram Beatriz ao pediatra Mauro
Silveira, conhecido pela família, que freqüenta a Sociedade Espírita na qual ele
palestra eventualmente. Após apalpar a barriga inchada, o pediatra disse:
– Ela tem um tumor.
Os pais jamais quiseram ouvir isso. Ao mesmo tempo em que ficaram atordoados,
sentiram-se aliviados.
– Ficamos quietos, não fizemos pergunta alguma. Apenas seguimos as
recomendações.
O pediatra pediu novos exames e os acompanhou em uma ecografia, explicando
todos os detalhes.
– Quando entrei no consultório, eu já não desejava que ela não tivesse nada,
queria que Deus mostrasse o que ela tinha. Era impossível não ter nada com
aquela barriga enorme.
A ecografia comprovou a presença do tumor. Mais tarde, uma tomografia indicou
o tamanho e a posição real daquelas células malignas. Aos sete meses de vida,
Beatriz pesava quatro quilos, dos quais um era a massa do tumor de seis
centímetros e meio. O neuroblastoma alojado na supra-renal esquerda, uma
glândula endócrina localizada sobre o rim, envolvia ainda a artéria.
Segundo a pediatra Emma Chen Sasse, esse câncer se origina das células que
também compõem o sistema nervoso, tanto do central quanto dos nervos que vão a
outros órgãos. Por isso, pode aparecer em diversos locais do organismo, desde a
região do cérebro até a área mais inferior da coluna, incluindo todo o abdome.
Esse prognóstico, que surgiu na hora certa, faz parte do principal progresso
da medicina oncológica no Brasil. Segundo o Instituto Nacional do Câncer,
atualmente 70% das crianças acometidas pela doença podem ser curadas, quando
diagnosticadas precocemente e tratadas em centros especializados. Há décadas
vem-se observando um aumento nas taxas de diagnóstico de tumores na infância. E,
paralelamente, tem-se verificado progresso e cura desses tumores em crianças. No
país, a cada dez crianças com câncer, quatro têm leucemia linfática aguda (LLA)
e cerca de 70% a 80% desses casos curam-se.
Após a confirmação, Patrícia e Fábio retornaram ao Pequeno Príncipe, onde
haviam começado a busca de respostas, para iniciar o tratamento.
O corredor do lado de cá era comprido, mas menos infinito do que um dia de
céu azul, que já não viam há muito tempo. As portas fechadas criavam um clima de
suspense, e, quando abertas, só o que podia ser reconhecido eram diferentes
dramas de vida. Em cada quarto o silêncio predominava, mas também ouviam-se
choros, berros e murmúrios.
– Quando voltamos àquele corredor tive que passar pela porta que separa dois
mundos. E quando se passa para o lado de lá a vida se transforma completamente.
Ao mudar de lado, medo e alívio se misturam. A partir dali luta-se o quanto for
necessário.
Essa foi uma das forças que a mãe teve para não desistir.
– Os dias mais difíceis foram quando não pude ficar perto da minha filha. Ela
não podia sentir fome do meu leite. Foram 72 horas andando pelo corredor,
orando, deixando-a com o pai, ficando distante da minha neném.
Em 20 de dezembro fizeram uma biópsia em Beatriz. Ela ficou três dias sem
mamar no peito.
– Eu estava desesperada por não permitirem que eu fosse mãe.
O caso de Beatriz não se enquadra no tipo de câncer mais comum entre as
crianças brasileiras. Mas em julho de 2005 as sessões de quimioterapia chegaram
ao fim, e a pediatra precisou repetir várias vezes que tudo estava acabado para
que Patrícia acreditasse no sucesso do tratamento.
– Durante sete meses, minha vida era a Beatriz. Tudo era segundo plano: casa,
comida e até marido. Eu sentia como se ela precisasse 100% de mim, então fiz
tudo a ela. Da mesma forma o pai se entregou, por isso a nossa relação de marido
e mulher ficou de lado. Sempre lutamos juntos pela nossa filha. Até outras
adversidades, como um cisto em meu ovário e uma perna quebrada do Fábio, não
tinham a importância da Beatriz.
Trabalho produzido para a disciplina de Redação Jornalística 6, ministrada pelo professor Jacques Mick no primeiro semestre de 2006