Há algum tempo (não sei se hoje ainda é o caso), quem utilizasse a BR-101 buscando algum lugar mais ao Sul, encontraria depois de Curitiba uma série de “outdoors” com a sugestiva informação de que “a Europa é aqui”, indicando-a alguns quilômetros adiante. “Aqui” quer dizer Joinville. Tal campanha publicitária fez tanto sucesso que ainda nestes dias há quem jure que depois de passar pela Serra do Mar chega-se ao maciço central ou aos Alpes.
Entretanto, não se chega ao destino pretendido. Com saneamento básico presente em 15% das residências do município; com uma estação de tratamento de efluentes de esgoto doméstico sem licença ambiental; com 578 leitos hospitalares disponíveis ao Sistema Único de Saúde para uma população estimada de 429.604 habitantes (segundo o censo de 2001); com um transporte coletivo caro e ineficiente (um mês do metrô parisiense, sem limitação de viagem, custa € 52,50, aproximadamente R$ 145, 50, enquanto em Joinville uma passagem custa R$ 2,30); com uma diferença entre as escolas públicas e privadas girando em torno de 25% a favor das privadas, conforme a última avaliação do Enem, Joinville parece não ter, sob qualquer critério, os indicadores da cidade européia que pretende ser.
Esta mitologia, que não foi inventada pelo “outdoor” mas está enraizada na auto-imagem de uma parcela da população, não resiste aos fatos, mas sobrevive soberana porque prescinde dos fatos, como qualquer mitologia. Pior para os fatos. Não é raro encontrar nos jornais locais alguma coisa “maior do mundo” em curso, acontecendo, construída, projetada ou realizada em Joinville. Aliás, este tipo de idealização patológica bem que merecia um estudo do dr. Simão Bacamarte, o especialista predileto de Machado de Assis quando o assunto é desvarios humanos. Nos seus momentos de euforia, Joinville toma ares da Itaguaí machadiana.
Há sucedâneos perigosos que decorrem desta obsessão municipal. Um deles é a crença de que todos os problemas locais foram importados, e a contragosto.
Recentemente o poder público municipal decidiu que não deve haver mais comércio ambulante na cidade. No informativo de uma respeitável associação local era explicado que esta solução representava um ganho estético, isto é, fazia parte da limpeza e do embelezamento da cidade. E um dos próceres desta associação reforçava, em programa televisivo, que finalmente a cidade estava limpa.
Os ambulantes lutam para manter seu ganha-pão, mas sua luta é duríssima. Nascem da própria dinâmica das cidades, mas são rejeitados pelos que deveriam “pensar a cidade”. Contra eles, toda uma mentalidade higienista que não os considera parte da comunidade, como sugeriu um digníssimo representante do povo: “O problema é que vem muita gente de fora”. Para a mentalidade média, eles são apenas mais um dos problemas “estrangeiros” da cidade. A incapacidade de a cidade perceber-se como é faz com que sua percepção dos outros seja deformada. Pior para os outros.
Vale notar que do lado dos ambulantes há um representante do Padre Eterno. Ele sabe que os ambulantes não são os vendilhões do templo. Que sua missão é ganhar o pão com o suor do rosto. Mas igualmente sabe que é mais fácil repetir o milagre das bodas de Canaã do que operar o milagre da multiplicação dos postos de trabalho, já que o milagre do bom samaritano, por aqui, está fora de questão. Deus tenha piedade de nós.
Alexandre Carrasco, ex-professor do Ielusc, é doutor em filosofia pela USP/ Paris IV e tradutor.