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Matéria 2373, publicada em 22/07/2006.


:Divulgação/ Ingrid Aguiar

José Mindlin em sua biblioteca

Bibliófilo e imortal da ABL fala sobre o fascínio pelos livros

Manoel Schlindwein

Apoiando-se no corrimão, o velhinho de 91 anos mal parece ter forças para subir o longo lance de escadas. Incentivado pela incontrolável paixão, ele faz questão de vencer os degraus e acender as lâmpadas que iluminam extensos corredores recheados de livros. A diferença de sua biblioteca para as demais não está na minuciosa organização ou no silêncio reconfortante: ela pode ser vista em cada volume encontrado. São obras raras, fora de catálogo, muito antigas, de valor incalculável. É o trabalho de uma vida inteira. Vida de José Mindlin, o mais importante bibliófilo brasileiro, agora imortalizado pela eleição para a cadeira número 29 da Academia Brasileira de Letras.

O trabalho do dono da maior biblioteca privada da América Latina não tem fim. Ainda hoje ele continua a garimpar sebos e a encher as estantes da casa na zona sul da capital paulista. Colecionador inveterado, tem o privilégio de receber ofertas de raridades antes mesmo de elas irem a leilão. A mesma biblioteca que já recebeu visitantes ilustres como José Saramago e Vargas Llosa hoje abriga diariamente estudantes e pesquisadores ávidos pelas iguarias. Quem deu as caras por lá recentemente foi Maria Adelaide Amaral, metida na redação da biografia de uma cantora do século 19.

Não é para menos. Ao fuçar entre as cerca de 38 mil obras o visitante esbarra com os originais datilografados de "Grande Sertão: Veredas", e as devidas correções do autor, João Guimarães Rosa. Ou então com poemas de Carlos Drummond de Andrade escritos a mão em dedicatórias de livros. Guardadas em plástico próprio, Mindlin retira os originais de "O Mundo Coberto de Pennas" e mostra orgulhoso as correções de Graciliano Ramos, em especial aquele onde ele risca o título do livro e muda-o para "Vidas Secas". Reluzem em sua biblioteca as primeiras edições de "Os Lusíadas", de Luís Vaz de Camões, publicadas em 1572. Há também os raríssimos incunábulos — livros impressos entre 1455 (quando Gutemberg inventou os tipos móveis) e 1500. Cada prateleira esconde uma pérola, como as primeiras edições de "O Guarany", de José de Alencar, e a "A Moreninha", de Joaquim Manuel de Macedo.

Todos os dias Mindlin recebe novos livros para serem acrescentados à coleção. "Alguns bons, outros nem tanto", diz o paulistano filho de imigrantes russos que contabiliza ter lido mais de 8 mil livros. Boa parte deles em congestionamentos no trânsito. "Sempre que tenho alguns minutos estou lendo. Minhas leituras são fruto de pequenos intervalos", explica. Para cuidar do acervo, Mindlin conta com o auxílio de uma trinca de bibliotecárias, carinhosamente chamadas de "as três graças". A limpeza dos livros consome mais de dois meses, fazendo com que o trabalho seja reiniciado continuamente, diz, sem disfarçar o bom humor.

Leitor de O Estado de S. Paulo há décadas, foi seu mais jovem redator. Aos 14 anos já traduzia textos de grandes mestres da literatura estrangeira. Em 1932 foi estudar direito na Faculdade do Largo São Francisco, onde acabou conhecendo sua mulher, Guita Kauffmann, que o acompanha até hoje. Ele adora ler em voz alta e ela adora ouvir — um casal perfeito, diga-se. Mindlin trabalhou durante 15 anos como advogado e depois ajudou a fundar a Metal Leve, uma das principais fabricantes de autopeças do país. O hábito de comprar livros foi iniciado aos 13 anos, quando adquiriu de um livreiro da rua Riachuelo uma edição portuguesa de "Discurso sobre a história universal", de Bossuet, impresso em 1740.

Mindlin observa com ressalva os estrondosos sucessos editoriais de agora e não faz rodeios. Não morre de admiração por Paulo Coelho e não leu “Harry Potter”. Apesar de que sua neta, igualmente uma leitura voraz, contou-lhe que o terceiro livro da série é inferior aos dois primeiros. "Não é interessante um comentário desses vindo de uma garotinha de 9 anos?", pergunta, com orgulho evidente. Esta é a grande alegria de Mindlin: fazer o que chama de "inocular o vírus da leitura" nas pessoas. "No Brasil os leitores sempre foram minoria. Ainda estamos atrasados, mas temos feito progressos", garante.

Hoje a visão começa a dar os primeiros sinais de cansaço. Para ler as perguntas desta entrevista, Mindlin usou um ampliador de imagem. Otimista, acredita que logo voltará a enxergar normalmente. "Não tomo conhecimento da idade e procuro não criar muito juízo. Porque o juízo estabelece muita restrição". Tanto é verdade que Machado de Assis e Guimarães Rosa são companheiros constantes. Não há ano em que o bibliófilo não os releia. É claro, os estrangeiros também têm lugar na cabeceira de Mindlin: ele leu cinco vezes "Em busca do tempo perdido", de quase 2.500 páginas, o cânone de Marcel Proust, seu autor predileto. Todos, via de regra, sem a ajuda do dicionário. Mindlin não simpatiza muito com eles. Leia a seguir a entrevista com o brasileiro que adjetiva sua paixão como uma "loucura mansa", uma "verdadeira compulsão patológica" pelos livros.

Como o senhor observa os diálogos travados na internet, cheios de gírias próprias e abreviação de palavras, como "tb" para "também" e "vc" para "você"?

Mindlin – O e-mail já é uma melhoria na comunicação, mas falta assinatura, um caráter pessoal na mensagem. Isso vai empobrecendo a língua, não há dúvida. Não estou familiarizado com a computação, mas as bibliotecárias aqui usam muito. Ainda escrevo a mão, de modo que fiz a primeira versão de "Uma vida entre livros" [seu livro de memórias. Edusp, 232 páginas, R$ 70] em cinco finais de semana.

Mas o senhor não acha que a tecnologia pode ampliar a base de leitores atual?

Mindlin – O livro estabelece um contato físico com o leitor que os meios eletrônicos não oferecem. Eu acho que a tecnologia pode ser um estímulo para a leitura e um complemento, mas não deve ser o objetivo. Ainda acho que o livro é insubstituível.

Que tal uma dica para as editoras: quais autores ou livros inéditos mereciam ser publicados? E quais títulos já esgotados poderiam ser relançados?

Mindlin – Esse fato é importante. Agora se publica tanta coisa que as editoras não dão conta. Hoje a quantidade de livros é tal que um acervo é necessariamente incompleto. Mesmo bons livros que saem, depois do lançamento as livrarias têm dois ou três exemplares e, quando se vai procurar, eles não têm na hora, vão buscar no editor. Há muita coisa interessante que deveria ser editada. Vou lhe dar um pequeno exemplo. Outro dia uma amiga estava procurando um livro de Aluísio Azevedo, o "Livro de uma sogra" [Editora Nova Aguilar, 130 páginas, R$ 28,60], e não conseguia encontrar. E, aliás, é um livro muito interessante.

Como o senhor dividia o tempo entre a leitura e o comando da Metal Leve?

Mindlin – A Metal Leve era dirigida por uma equipe. Estive na presidência durante muitos anos, mas não me deixava envolver totalmente. A leitura sempre foi uma coisa absolutamente indispensável. A pessoa que diz que não lê porque não tem tempo na realidade está usando o problema de tempo como pretexto para não ler. Quem quer ler consegue tempo. Minha leitura sempre foi soma de pequenos períodos. Se tenho quinze minutos, eu leio. Com isso lia uma média de oito a dez livros por semana. Naturalmente há calhamaços que você leva 15 dias lendo, mas essa regularidade se manteve por pelo menos 80 anos de minha vida.

Qual livro o senhor ainda não leu?

Mindlin – Não li "O paraíso perdido", de John Milton [Editora Martin Claret, 485 páginas, R$ 18,90]. Mas amigos meus dizem que estou perdendo uma coisa de extraordinária beleza e acho que ainda vou ler. É uma verdadeira empreitada, porque no momento não consigo ler por problemas de visão. Há pessoas que lêem para mim, mas como tenho memória visual mais do que auditiva seria muito melhor se pudesse ler. Estou usando aparelhos de auxílio para leitura e tentando tratamentos. Então, como sou um otimista incorrigível, ainda espero voltar a ler.

A dificuldade visual prejudica sua relação com os livros?

Mindlin – De modo algum. A leitura por amigos e familiares fez com que eu não perdesse o contato com os livros. Tenho esse privilégio de não faltarem pessoas dispostas a ler para mim.

O que o senhor acha de sucessos editoriais como “Harry Potter” e “O código Da Vinci”?

Mindlin – Evidentemente há uma estratégia de marketing para promovê-los. Agora muita gente que começa a leitura por obras como essas vai adquirindo o hábito da leitura. O importante não é o que se lê no início, o importante é formar o hábito. Depois, com o tempo, a própria pessoa vai fazendo a seleção do que vale a pena ler. Há muitas fontes de referência para a pessoa saber quais são os livros fundamentais.

Como incentivar a leitura entre os mais jovens, tão grudados a celular, computador, iPOD e TV a cabo?

Mindlin – O fundamental é criar o hábito da leitura desde a infância. E isso cabe a todos nós. Procurar este que chamo de vírus incurável da leitura, e oferecer a todos que encontrar. Faço isso e tenho visto que dá resultado. É uma questão de mostrar o prazer que a leitura pode proporcionar, não como obrigação. Quem não lê não sabe o que está perdendo. Desde que tenha uma ou duas pessoas dispostas a incentivar a leitura, que tenham o hábito de ler, devem promover leituras em voz alta e dar acesso aos livros. O que falta no Brasil são bibliotecas, bibliotecas públicas, circulantes. Quem vive de salário mínimo não pode comprar livros, mas tê-los não devia ser condição da leitura. Grandes ou pequenas bibliotecas públicas dão acesso aos livros. Não precisam ser grandes, devem ser organizadas. O mesmo vale para a escola. Professores devem incentivar os alunos e fazer entender que a leitura é uma fonte de prazer.


Manoel Schlindwein, jornalista formado pelo Ielusc, trabalha em Brasília e é colaborador da Revi.

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