Algumas das principais colunas políticas veiculadas pela grande mídia impressa e eletrônica têm revelado o inconformismo de seus consagrados jornalistas com a percepção dominante entre os brasileiros sobre a crise política e os rumos indicados, até agora, pelos vários resultados das pesquisas de opinião sobre as eleições de 2006.
Em alguns casos, esse inconformismo não se restringe ao que ocorre entre nós e alcança, inclusive, os resultados eleitorais mais recentes de vizinhos países sul-americanos, como Bolívia e Peru, além, é claro, do inconformismo já assentado em relação a resultados eleitorais na Venezuela.
Ademais da permanente desqualificação dos líderes políticos democraticamente vitoriosos como, por exemplo, referir-se a eles como "expressões caducas de uma retórica que ficou perdida nos anos 70", um dos pontos comuns do inconformismo dos colunistas é a velha percepção elitista sobre a "ignorância" da população brasileira, sua desinformação e sua incapacidade de decidir "corretamente". Além disso, os colunistas não se conformam (nem compreendem o porquê) de suas "esclarecidas" opiniões não estarem prevalecendo entre a maioria da opinião pública.
Não voltarei aqui ao tema do "autismo" persistente desses colunistas – um direito deles – cujas opiniões estão a distanciá-los, cada vez mais, da opinião da maioria da população brasileira (ver, a esse respeito, "A opinião privada tornada pública"; e, no OI 373,"Opinião da imprensa não é a opinião pública").
Retomo, no entanto, um velho mas sempre atual tema da ciência política – a consolidação dos regimes democráticos – que me parece apropriado, não só ao que vem ocorrendo com os principais colunistas, mas com o conjunto da cobertura que a grande mídia tem oferecido da crise política desde maio de 2005.
Impressão distorcida
Em capítulo de livro escrito e publicado há cerca de 20 anos ("A Nova República brasileira: sob a espada de Dâmocles", in Democratizando o Brasil, organizado por Alfred Stepan, Paz e Terra, 1988), a professora Maria do Carmo Campello de Souza, recentemente falecida, discute, dentre outras, a questão da credibilidade da democracia. Nas rupturas democráticas, afirma ela, as crises econômicas têm menor peso causal do que a presença ou ausência do system blame. Citando especificamente a Alemanha e a Áustria na década de 1930, pode-se dizer que "o processo de avaliação negativa do sistema democrático estava tão disseminado que, quando alguns setores vieram em defesa do regime democrático, eles já encontravam reduzidos a uma minoria para serem capazes de impedir a ruptura".
Nesse contexto, a análise que a professora Campello de Souza fez da situação brasileira durante a transição da chamada Nova República, mantém a sua pertinência para os dias de hoje. Vale a pena a longa citação:
A intervenção da imprensa, rádio e televisão no processo político brasileiro requer um estudo lingüístico sistemático sobre o "discurso adversário" em relação à democracia expresso pelos meios de comunicação. Parece-nos, contudo, possível dizer (...) que os meios de comunicação tem tido uma participação extremamente acentuada na extensão do processo de system blame (...). Deve-se assinalar o papel exercido pelos meios de comunicação na formação da imagem pública do regime, sobretudo no que se refere à acentuação de um aspecto sempre presente na cultura política do país – a desconfiança arraigada em relação à política e aos políticos – que pode reforçar a descrença sobre a própria estrutura de representação partidária-parlamentar (pp. 586-7). (...)
O teor exclusivamente denunciatório de grande parte das informações acaba por estabelecer junto à sociedade (...) uma ligação direta e extremamente nefasta entre a desmoralização da atual conjuntura e a substância mesma dos regimes democráticos. (...) A despeito da evidente responsabilidade que cabe à imensa maioria da classe política pelo desenrolar sombrio do processo político brasileiro, os meios de comunicação a apresentam de modo homogeneizado e, em comparação com os dardos de sua crítica, poupam outros setores (...). Tem-se muitas vezes a impressão de que corrupção, cinismo e desmandos são monopólio dos políticos, dos partidos ou do Congresso (...). (pp.588-9, passim).
O que está em jogo
Não deveriam essas observações da professora Maria do Carmo Campello de Souza ser objeto da reflexão dos colunistas da grande mídia? Será que a ausência de sintonia entre o que pensam os colunistas e a maioria da população brasileira não vai além da "ignorância" dessa e da "sabedoria" daqueles? Será que depois de 12 meses de doses diárias maciças de denúncias e críticas ácidas, sobretudo aos poderes Executivo e Legislativo, a "substância mesma do regime democrático" não estaria sendo atingida? Já não teria a grande mídia, por exemplo, parte da responsabilidade no surgimento de movimentos a favor do voto nulo nas próximas eleições?
Com a transformação do jornalismo em profissão, no final do século 19, foi se constituindo também o ethos profissional que estabelece a "responsabilidade moral do jornalista de erradicar o mal e mostrar as enfermidades sociais". A auto-imagem dominante entre os jornalistas – no Brasil e nos demais países de democracia liberal – é a de profissionais que se consideram mandatários dessa nobre missão.
Quais seriam, no entanto, os limites – e responsabilidades – do jornalismo em relação ao bem maior da democracia que garante, em primeiro lugar, o funcionamento da própria mídia como empresa privada e livre?
O inconformismo publicamente manifesto dos colunistas com as opiniões e a vontade popular – base dos regimes democráticos – parece indicar que estaria na hora deles próprios – e da grande mídia como instituição privada e livre – refletirem sobre questões como as apontadas acima. O que está em jogo é a consolidação da nossa própria democracia.
*Publicado originalmente no Observatório da Imprensa e reproduzido aqui com autorização do autor.
Venício A. de Lima é pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (Nemp), da Universidade de Brasília, e autor, entre outros, de "Mídia: Teoria e Política" (editora Fundação Perseu Abramo).