Revi Bom Jesus/Ielusc

>>  Joinville - Domingo, 28 de abril de 2024 - 21h04min   <<


chamadas

Matéria 2063, publicada em 29/04/2006.


Trecho de "O reino e o poder", de Gay Talese

(Páginas 38 a 40)

"Apesar de todas as suas qualidades, o sucesso inicial de Wicker no Times deveu-se muito à sorte, ao fato de estar no lugar certo na hora certa. Em geral, isso vale para a maioria dos jornalistas que obtém sucesso quando jovens, e se aplica também ao caso de Wicker: ele começou a trabalhar para o jornal logo antes de sua revolução, foi para a sucursal de Reston bem na hora do entusiasmo inicial da era Kennedy e do drama que se seguiu, e foi o único homem do Times que viajou com Kennedy para Dallas. Sua matéria sobre o assassinato ocupou mais de uma página do Times de 23 de novembro de 1963, uma obra notável de reportagem e escrita, de fatos reunidos em meio à confusão, de reconstrução do dia mais perturbador de sua vida, do desespero, da amargura e da descrença; e, depois, pegou o telefone e ditou a matéria para Nova York com uma voz que raramente se alterava com a emoção.

Naquele dia Wicker estava sem sua caderneta de notas e teve que rabiscar suas observações no verso de um roteiro mimeografado da visita de dois dias de Kennedy ao Texas. Hoje, ele não consegue ler muitas dessas anotações, mas, no dia 22 de novembro, elas estavam tão claras quanto um texto em corpo 60. Escreveu sua matéria com outros repórteres na sala de imprensa do aeroporto de Dallas, tendo chegado lá depois de uma corrida de quase um quilômetro enquanto arrastava a máquina de escrever e a mala, saltando uma cerca no caminho sem diminuir o ritmo, lembrando quase tudo o que viu e ouviu depois que Kennedy foi alvejado, embora se recordasse de muito pouco do que acontecera antes disso. Wicker acompanhava a comitiva presidencial, em um dos ônibus da imprensa, não sabe bem qual; quando Kennedy foi atingido, ele não ouviu os tiros, embora outro repórter que estava no ônibus tivesse notado que o carro do presidente, que estava cerca de dez veículos à frente, partia acelerado.

Os ônibus da imprensa seguiram na mesma velocidade. Porém, as coisas começaram a mudar rapidamente. Wicker notou um policial de motocicleta saltar o meio-fio, descer da moto e sair correndo. Parecia haver alguma confusão na multidão de gente que estava parada ao longo da rua para ver o presidente. Os ônibus da imprensa pararam no lugar onde Kennedy faria um discurso. Wicker notou que as cabeças na multidão começavam a virar à medida que a notícia avançava. Ele estava literalmente vendo um rumor andar, lembrando-o do vento varrendo um trigal. Então, um estranho agarrou-o pelo braço e perguntou: “Atiraram no presidente?”. Wicker respondeu: “Acho que não, mas algo aconteceu”.

Wicker e os outros repórteres, cerca de 35 deles, foram até onde deveriam ouvir Kennedy discursar e foi ali que outro repórter veio correndo com a notícia. Então, todos correram em direção aos ônibus da imprensa, que os levariam ao Parkland Hospital. Nas horas seguintes, os detalhes começaram a se acumular — os relatos das testemunhas oculares, os boletins médicos, as palavras do porta-voz da Casa Branca, a lembrança de um jornalista de que ouvira os tiros, a descrição de um repórter da televisão de Dallas que vira um rifle na janela do canto do quinto ou sexto andar do Depósito de Livros Escolares do Texas. Havia verdades, meias-verdades, erros, ilusões, rumores, relatos de segunda mão, relatos de terceira mão, e tudo era passado para a imprensa, circulava livremente entre os jornalistas, e havia pouco tempo para checar fatos ou alegações. Wicker e os outros tinham de se guiar, em larga medida, pelo seu instinto, por sua experiência, seus insights, um senso especial que os bons repórteres desenvolvem e usam numa crise. E os instintos de Wicker lhe foram de grande valia nessa crise.

É provável que a matéria que Wicker escreveu em Dallas naquele dia, uma tarde de trabalho, perdure mais do que qualquer romance, peça de teatro, ensaio, ou reportagem que tenha escrito ou venha a escrever. Não é que tenha produzido um clássico, Não se trata disso. Ele fizera matérias tão boas quanto aquela antes, mais bem escritas até. No entanto, o teste em Dallas não tinha equivalente. Era o tipo de missão que podia consagrar um jornalista ou acabar com sua carreira em poucas horas. Wicker estava escrevendo para a história naquele dia e sua matéria dominou a primeira página, em colunas duplas e corpo maior que o usual, assim como sua assinatura. Era uma edição do Times que os leitores não iriam jogar fora no dia seguinte, um exemplar de colecionador. Seria poupada por centenas, talvez milhares de leitores, que a guardariam durante décadas em seus sótãos ou armários e a deixariam para as gerações futuras, como uma relíquia, ou um vago testemunho de sua existência no dia em que o presidente foi morto.

Se houvesse grandes erros nessa matéria — o que não ocorreu —, eles também sobreviveriam, desprestigiando Wicker entre seus colegas, mas desprestigiando muito mais o Times para seus leitores, não somente os que leriam a matéria naquele dia, como os que fariam isso meio século depois, os estudantes e historiadores que a consultariam a todo momento em microfilme."

Leia a íntegra da matéria de Tom Wicker aqui

800x600. ©2005 Agência Experimental de Jornalismo/Revi & Secord/Rede Bonja.