Como que numa catarse, meus quatro anos de faculdade e mais aquele ano inteiro de estágio na redação de A Notícia consubstanciaram-se em 31 dias. Dias de 24 horas acordado, diga-se. Participar da 23ª edição do Curso Abril de Jornalismo não foi tão-somente conviver com 70 pessoas de todos os cantos do país escolhidas através de um processo que deixou para trás três mil candidatos. Foi como um divisor de águas. Não um degrau, mas uma escada inteira de novos conhecimentos, contatos e experiências. Compartilho aqui alguns instantes.
Os assim chamados abrilianos foram divididos em 11 editorias equivalentes às revistas da casa. Eram todos jovens formandos especialistas em texto, fotografia e design. Ao longo do dia, palestras com diretores de redação, editores de arte e fotógrafos. No “tempo livre”, a principal tarefa do curso: cada grupo deveria desenvolver e apresentar uma missão correspondente à sua editoria. As equipes trabalhavam na redação da revista “Plug:”, local especialmente cedido para o desenvolvimento dos trabalhos — com monitores de plasma e acesso a todo os endereços da internet; blogs, fotologs e Orkut, inclusive. Por fim, convidados especiais como Danuza Leão e Mônica Waldvogel nos visitaram para contar suas experiências.
Fui selecionado para a editoria de Veja ao lado de duas mineiras, uma goiana, um carioca, um paranaense e um piauiense, o equivalente a quatro repórteres, dois designers e um fotógrafo. Nossa missão era elaborar uma pauta e emplacá-la na revista, feito que até então nenhuma outra equipe do curso conseguiu — e conosco não foi diferente. Elaboramos pautas ao gosto deles, bem estruturadas e repletas de jornalismo investigativo, mas não houve negociação. Engolimos goela abaixo a pauta sugerida por nosso orientador, Marcelo Carneiro, repórter especial de Veja. A missão? Localizar e entrevistar M., menor sobrevivente de um envenenamento que tomou a vida de seus pais e de sua irmã. O crime ocorreu em janeiro de 2005 na cidade de Campinas, e a menina, além de única testemunha, é apontada como suposta autora das mortes. Vale lembrar que o processo corre em segredo de justiça e ela ainda continua desaparecida, caçada por toda a grande imprensa.
Este trabalho, extremamente desafiador e prazeroso, consumiu a maioria do tempo do curso. Foram diversas viagens para Campinas, incontáveis horas ao telefone, visitas a inúmeras fontes e demoradas pesquisas na internet e em bancos de dados. O que fica? Trabalhar em equipe é fundamental. Um colega deve passar o telefone de uma fonte para outro, ouvir as dicas do motorista da empresa ajuda muito, escutar a opinião de um diagramador pode ser a diferença entre sucesso e fracasso. Não é possível fazer tudo sozinho. Mas acima disso: editores não são feitos para trocar palavras e escolher títulos, eles são quem conhece melhor do que ninguém como a matéria deve ser trabalhada.
No dia-a-dia de Veja pude sentir na pele o que tanto se conta pelos corredores. Ela é o xodó da casa, seu padrão de excelência é absurdamente fora do comum (apenas quatro iluminados a escrevem) e é uma verdadeira máquina de moer gente, tamanha a paranóia com os prazos e a qualidade do material em produção. Ao passo que redações como de National Geographic contam com dois ou três editores e pouco mais do que uma sala, Veja ocupa um andar inteiro e emprega mais de 70 jornalistas (que só fazem relatórios, então encaminhados para seus superiores, que vão aparando arestas até o produto final). Não é à toa que é a quarta maior revista do mundo.
Simples assim: quando é preciso saber o que especialistas estão pensando, não é possível ouvir apenas um pró e um contra uma idéia. Para chegar a frases corriqueiras como “há duas correntes de pensamento”, dois ou três repórteres fizeram cada um ao menos quarenta telefonemas. O engraçado? Já nos primeiros dias, a conclusão unânime, ora constrangedora, ora sinal de amadurecimento (ou rendição?): “Passamos a faculdade inteira criticando a revista, mas o que todos queríamos era fazer parte dela”. Como é de se imaginar, gastamos incontáveis horas nesse dilema tanto quanto nos divertimos com os sotaques exóticos deste Brasil.
Para não dizer que omiti o glamour, aspas dos organizadores: obrigado por aceitarem nosso convite para participar do curso, vocês são a nata do jornalismo brasileiro e é um privilégio de nossa parte tê-los aqui. Sim, havia um outdoor de boas-vindas fixado em plena Marginal Pinheiros, éramos recebidos com estima pelos diretores de redação do grupo e Roberto Civita em pessoa foi nos saudar no último dia. Cada aluno recebeu quilos de revistas, mochila, crachá, camiseta e refeições. Da redação podia-se ligar para qualquer lugar do mundo (tenha certeza, fizemos o teste) e os 170 motoristas estavam disponíveis 24 horas para nos atender. Por último: cada equipe tinha três mil reais à disposição para gastar como quisesse a fim de cumprir sua missão. Muitos, como Veja, que precisou voar até o Rio de Janeiro para cumprir sua tarefa, extrapolaram a cota. Não houve problema algum.
Fragmentos
- Assim como Folha de S. Paulo e o abaixo-assinado, a Editora Abril é contra a obrigatoriedade do diploma para exercício da profissão de jornalista. “Procuramos talentos”, disse Maurizio Mauro, presidente do grupo.
- Capas são feitas para vender revista, frisou incontáveis vezes Thomas Souto Corrêa, membro do conselho editorial e um dos principais executivos da companhia. Ou seja, é de bombas e apelos (com elegância) que os empregos se garantem.
- O site mais acessado do grupo não é de nenhuma revista, como poderia se imaginar, mas é o portal de celulares, wap.abril.com.br. É o que explica o fato de 40% do faturamento da revista Playboy vir da telefonia móvel.
- Aliás, a Playboy brasileira tem a segunda maior tiragem do mundo. Só perde para a original americana.
- Ao contrário do que todas as pessoas que não trabalham na revista Veja pensam, ela não é um semanário de informação, é um semanário de opinião. Palavra de seus artífices. Motivo pelo qual pude ouvir durante palestra a pérola: “Nós elegemos inimigos”. Assim, não é incomum editores recém-saídos da reunião de pauta pedirem para jornalistas localizarem fontes que sustentem suas hipóteses. Quem paga o almoço? Veja.
- A revista Bravo dá prejuízo e só continua no catálogo da editora porque é grife, faz bem, dá status. Seria necessário triplicar sua vendagem para empatar as contas. Este fato ajuda a entender porque uma revista como a New Yorker não vinga em terras tupiniquins. Não há mercado.
- E jornalismo hoje não é feito de boas histórias, mas de coisas que atraiam o leitor: por isso que Super Interessante está no núcleo jovem da editora, ao lado de Capricho, e existem cinco revistas que tratam basicamente da mesma coisa: Contigo, Caras, Minha Novela, Tititi e Ana Maria.
- No último dia do curso são escolhidos quatros trainnes: dois de texto e dois de design. Eles passam por quatro redações ao longo de 12 meses, mas não há certeza de contratação. Os demais buscam trabalhos freelancers. A maioria consegue.
Manoel Schlindwein formou-se em 2005 no Ielusc e hoje trabalha em Brasília