Conta-se que em 1856 um escravo que fugiu de São Francisco do Sul se uniu a 25 famílias que moravam em Itapocu (região de Araquari). Originário de uma colônia portuguesa, o escravo trazia consigo uma imagem barroca de Nossa Senhora do Rosário. Segundo a narrativa oral, a santa começou a ser cultuada pelos negros após salvar dois escravos fugidos. Um clarão provocado pela divindade católica teria impedido que fossem estraçalhados pelos cães do capitão-do-mato. Como reconhecimento de seu milagre, a virgem teria pedido o culto em forma de versos e batuque.
Em 2005, após 149 anos, as manifestações de devoção à santa continuam. O grupo Catumbi fundou sua própria igreja, a Igreja Católica do Brasil. José Marcelino Maria, o Maia, é há mais de 30 anos o capitão do grupo (o responsável pela entoação dos cantos tradicionais). Maia conta que as festividades acontecem de 24 a 26 de dezembro em memória dos escravos que comemoravam na mesma época. Hoje, conforme o capitão, não há restrições para quem quiser participar do Catumbi. “Têm vários brancos participando, e é através da família e dos amigos negros ou brancos que o grupo continua aumentando”, destaca.
A comunidade do Catumbi representa um esforço para a manutenção da identidade afro-brasileira. Mas não tem pretensões apologéticas de pureza racial. O movimento é cultural, enriquecido pela diversidade das relações que propõe. Assimila pessoas e as contextualiza em sua “festa”. A partir das lembranças de seus ancestrais africanos recriam as experiências brasileiras. Pois, como diz Maia: “Nas religiões africanas, a santa é para ser Iemanjá. Mas no Brasil, sob a forte influência portuguesa, em algum momento, em um outro contexto, ‘os escravos’ aderiram à religião católica. Desde então, estamos sempre nos adaptando”.
Após o deslocamento das várias e distintas comunidades negras africanas do espaço natural, suas culturas foram “homogeneizadas” num discurso que as identifica pela pele. Ainda hoje, ignoram-se outras distinções como religião e relações interpessoais. “Desconsideram que somos sempre diferentes e estamos sempre negociando diferentes tipos de diferenças”, apregoa o sociólogo jamaicano Stuart Hall a propósito do discurso simplificador atribuído ao sujeito afrodescendente.
Para vários teóricos contemporâneos como o brasileiro Muniz Sodré, o americano Clifford Geertz e o próprio Hall, a proposta da atual antropologia é substituir a explicação do “negro”, ponto de partida de uma identidade determinante, por uma interpretação do sujeito-negro enquanto ator e produtor de sua própria “realidade”. A idéia é deixar para cada indivíduo a decisão de participar ou rejeitar a identidade “negróide” construída a partir do discurso dos não-negros e assimilada ao discurso dos não-brancos. O objetivo, como diz Stuart Hall, é o fim da noção ingênua de que há um sujeito essencial, seja negro, branco ou negro-branco.