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Matéria 1126, publicada em 04/05/2005.


Lei Aúrea não libertou os negros

Cristiane Pereira

"Ó formas alvas! brancas! Formas claras! De luares, de neves, de neblinas!... Ó formas vagas, fluidas, cristalinas... Incensos dos turíbulos de aras..."

Por mais estranho que pareça, essa louvação ao branco vem do poeta negro Cruz e Sousa, que enfrentou o desafio de ser filho de escravos alforriados e ao mesmo tempo intelectual na preconceituosa sociedade brasileira do século 19. Hoje, em pleno século 21, a situação dos negros no Brasil não se modificou muito. Mauro de Oliveira, Anita dos Santos e Joaquim Antunes do Amaral são exemplos da discriminação racial.

Mauro é formado em processamento de dados pela UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina). Na entrevista para o primeiro emprego em uma multinacional, foi maltratado pela recepcionista. “Ela falou que existia um padrão para tudo dentro daquela empresa, inclusive para a cor dos funcionários”, desabafa Mauro. Indignado, ele foi até a delegacia mais próxima e registrou um boletim de ocorrência. Além de ter sido ultrajado pela recepcionista, teve que escutar do delegado que denúncias de racismo costumam dar em nada.

O advogado Abel Michesk discorda: “A Constituição brasileira é clara ao assegurar tratamento igualitário a todos os cidadãos brasileiros, independentemente de credo, raça ou religião”. Ele ainda garante que em processos de discriminação racial os culpados são punidos com todos os rigores da lei, mais precisamente do artigo 5º da Constituição Federal, que diz: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e a propriedade”. Sendo assim, ainda de acordo com o inciso XLII do artigo 5º, a prática de racismo “constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito a pena de reclusão, nos termos da lei”.

Na ocasião, Mauro não aceitou fazer acordo. Por isso faz quatro anos que o processo tramita no Fórum de Florianópolis sem uma decisão jurídica. Se a sentença for favorável à parte ofendida, ele receberá indenização no valor que o juiz estabelecer. Ao contrário de Mauro, Anita dos Santos e Joaquim Antunes do Amaral não quiseram fazer denúncia formal das ofensas recebidas. Ambos são moradores de bairros pobres em São Francisco do Sul. Anita é dona de casa e Joaquim, serralheiro, duas pessoas de famílias e lugares diferentes, mas que sentem literalmente na pele o peso da discriminação. Para Anita, as piadas de mau gosto e os termos pejorativos se tornaram tão corriqueiros que ela nem se dá ao trabalho de revidar. “Pra que responder? Os outros vão continuar pensando assim mesmo”, fala a dona de casa de 34 anos, com o olhar fixo no chão de terra batida da sua casa. Já Joaquim tem a resposta na ponta da língua para qualquer desacato: “Não aceito mesmo. Desaforo! Acham que negro é tapete para o branco pisar”.

Desde o Brasil Colônia e escravista medidas para reprimir e desencorajar a discriminação racial têm sido tomadas. A primeira delas foi a Lei do Ventre Livre, em 1871, que declarava liberto os filhos de mulher escrava nascidos desde a data da lei. Cinqüenta anos depois, em 1885, foi promulgada a Lei do Sexagenário, que libertava os negros acima de 60 anos. Eficientes ou não, elas, junto com vários fatores sócio-econômicos, preparam o caminho para o dia 13 de maio de 1888, quando foi assinada a Lei Áurea, declarando a libertação de todos os escravos. Era, oficialmente, o fim de 350 anos de escravidão no Brasil.

Depois de a Lei Áurea deixar a Princesa Isabel conhecida como “A Redentora”, a Lei Afonso Arinos, de 1947, traz notabilidade ao jurista e político mineiro Afonso Arinos de Mello Franco. Com o objetivo de conter o avanço da discriminação racial, Afonso elabora a lei que vigorou no país de 1951 até 1988, época em que foi incorporada à Constituição Federal. No século 21, as conquistas dos negros no mercado de trabalho, na arte e nas ciências poderiam ser indicadores da extinção do racismo. Porém, de acordo com a psicóloga e professora Márcia Amaral, a discriminação é fruto do preconceito que é construído culturalmente. Ou seja, por mais que existam leis, elas por si só não serão capazes de operar mudanças na mentalidade dos indivíduos. Enquanto faltar reflexão, a Lei Áurea não será plenamente cumprida, pois os negros ainda serão escravos do preconceito e da discriminação.

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