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Matéria 1032, publicada em 07/04/2005.


"Coiotes" guiam catarinenses no deserto mexicano

Jessé Giotti

Entre mexicanos, porto-riquenhos e até cubanos que tentam atravessar a fronteira estão os joinvilenses Amilton Moraes, 28 anos, e Gilberto de Souza, 30 (os nomes citados são fictícios). É segunda-feira, dia 18 de dezembro de 2000. Todos partiram de Matamoros – cidade limítrofe entre o México e os Estados Unidos – e pretendiam alcançar o estado do Texas; de lá se espalhariam pelo território ianque. À frente, o “coiote”. O atravessador indicava o caminho. Após atravessarem o Rio Grande a nado, andariam por mais de 10 quilômetros sob um sol de 45 graus – durante o percurso, um homem de 50 anos morreu. A caminhada seguiu até um ponto considerado estratégico pelo coiote, que consultava freqüentemente o relógio, preocupado com o horário da “migra” – polícia fronteiriça americana. Amilton e Gilberto temiam a ameaça que constituiam os próprios atravessadores. No deserto, é preciso aguardar o momento exato.

Domingo, 15 de outubro do mesmo ano. Gilberto de Souza convida Amilton para a “aventura americana”. Ele duvidou da seriedade da proposta. “A idéia”, lembra Amilton, “era deixar o emprego, onde trabalhava há seis anos, comprar passagens aéreas para o México e atravessar a fronteira, tudo em pouco mais de dois meses. Passaria o primeiro natal longe de casa”. Havia menos de três meses Roberto da Silva, um vizinho seu, tinha tentado. “Ele contou que tudo tinha corrido razoavelmente bem. Logo que chegou ao México encontrou o seu contato. No dia seguinte partiu para o lado americano. Tudo certo até o momento de, já em solo norte-americano, chamar um táxi de um telefone público. Veio a polícia. Preso e sem dinheiro para pagar a fiança de 3 mil dólares, teve que esperar quatro meses até ser deportado”, lembrou Amilton, que apesar disso partiu para o México.

Dia 17 de dezembro, nove domingos depois de feita a proposta, Gilberto e Amilton desembarcam no Aeropuerto Internacional de la Ciudad Del México, às 10h da manhã. Às 2h horas da tarde encontraram o atravessador. O pagamento, como ficara acertado ainda em Joinville, deveria ser feito no dia da chegada ao país de Emiliano Zapata (líder revolucionário mexicano). Gilberto de Souza tinha o dinheiro, em dólar, 3 mil; Amilton ofereceu um relógio de pulso, sem pulseira (havia ganhado ao completar cinco anos de trabalho na Multibrás – subsidiária brasileira da norte-americana Whirpool. O dinheiro da indenização deixara com a mulher e filhos, com ele apenas mil dólares – se precisasse de mais a mulher deveria enviar de alguma maneira). Amilton estava tenso, tentava convencer o coiote a aceitar a única coisa que admitia dispor para o pagamento. Em um idioma que não era espanhol, tampouco português, tentava impor-se. Por dentro esmorecia, por fora já suava. O coiote aceitou.

“Quando partimos para a fronteira, eu e todas aquelas pessoas ansiosas, estava muito quente. Todos pareciam irritados. A maioria dos atravessadores falava espanhol e muito rápido. Havia apenas um coiote brasileiro. Muitos emigrantes já pareciam arrependidos. Alguns tinham pagado 10 mil dólares para estar ali. Até o horizonte só se via deserto, depois ainda teríamos que despistar a migra, a idéia assustava. Superada a fronteira, todos nós seriamos abandonados, no máximo receberíamos indicações de hospedagem, rodoviária e números telefônicos de táxi, nos quais eu não confiava. Talvez com mais algum dinheiro poderiamos embarcar em caminhões e viajar centenas e até milhares de quilômetros pelas rodovias americanas. Essas paisagens áridas, que agora enchia os olhos de todos, se estendia desde o oeste [estado da Califórnia] até o sudeste [Texas]”, conta Amilton. Nessa mesma região estima-se que exista um fluxo anual de três milhões de pessoas que tentam atravessar a fronteira. Segundo divulgou o site “workusa.net”, de 1999 a 2002 foram detidos na fronteira México-Estados Unidos, 7.784 brasileiros. E só no ano de 2003 foram 5.008 detidos na mesma região. No Terrace Park Cemetery, área rural no estado da Califórnia, há um descampado com milhares de covas rasas. Estima-se que pelo menos em 180 delas estejam enterrados corpos de brasileiros. Alguns grupos humanitários colocam placas, feito lápides, onde consta um curto epitáfio: “No olvidados” (não esquecidos).

Fora-da-lei e longe de casa

Enfim, depois de dois dias em uma paisagem inóspita, chegaram quase todos ao outro lado. Estavam em Laredo, no Texas, e dali Gilberto e Amilton partiriam para Boston, em Massachusetts. Estima-se que em Boston residam 40 mil trabalhadores brasileiros legalizados e cerca de 170 mil ilegais. Na mesma semana da chegada já estavam empregados (de dia tiravam neve das entradas das casas e à noite trabalhavam como porteiros de casas noturnas). Amilton logo comprou um carro, um Honda Civic, 94, branco, que dirigia com uma habilitação falsa. Certo dia, em que voltou dirigindo do trabalho, se perdeu. Não encontrava o caminho de volta pra casa. Deu várias voltas nos mesmos quarteirões na tentativa de reconhecer algum ponto de referência. Isso provocou a desconfiança da polícia local. Ele então é interceptado. Tremia, porque sequer falava inglês. O policial tentou se comunicar em espanhol. Amilton explicou, como pôde, que estava perdido. Suava. O policial chamou reforço. “Nessa hora eu tive certeza que seria preso e deportado. Fim da aventura. Droga. Imaginei, e tudo se passava num longo instante, a decepção de meus filhos e mulher quando voltasse com menos do que tinha quando fui. Segurava o choro”, revela. Um carro de polícia à frente e outro atrás o escoltaram até sua residência em um bairro de Boston, despediram-se e aconselharam mais cuidado nos próximos passeios. Ele despediu-se também: “Bye-bye, hasta la vista”, disse segurando o riso.

Como Amilton e Gilberto há milhares de brasileiros que deixam as famílias para viver nos EUA e juntar dinheiro. Muitos remetem parte do que ganham para parentes que ficaram no Brasil. A matéria divulgada em dois de março deste ano, na revista “Istoé Dinheiro”, atribuiu ao Banco Central a informação de que em 2004 os brasileiros remeteram para o país U$$ 1,5 bilhão a partir dos Estados Unidos. A reportagem chama a atenção para o fato de que há cinco anos os depósitos teriam alcançado a marca de U$$ 2,5 bilhões. E lembra que nesta mesma época o número de brasileiros com visto de entrada no EUA era de aproximadamente 3 milhões, enquanto hoje há no máximo 1 milhão de brasileiros com entrada livre no país de Bush (que prometeu conceder visto de trabalho com validade de três anos com possibilidades de renovação por mais três a todos os imigrantes ilegais que não tiverem outras pendências com a justiça de seu país. Até agora isso não ocorreu. Há políticos democratas americanos que defendem a anistia geral para os ilegais).

Enquanto isso, no Texas, discute-se leis que visam tornar mais difícil a permanência ilegal no estado. Estão sendo consideradas propostas como negar atendimento médico e medicamentos do serviço público a imigrantes. Argumenta-se que quem paga impostos está cobrindo gastos de ilegais. “Não consideram que a mão-de-obra imigrante é barata e por isso movimenta a economia, o que gastam em impostos é economizado com nossos serviços a preço de banana brasileira”, considera Amilton. Ele ainda argumenta: “A rede de supermercado All Market, a maior do mundo, depende muito dos estrangeiros. Além de usá-los no trabalho, tem neles sua maior clientela. Vejo todos os dias a massa de imigrantes, é possível reconhecê-los pela cara, lotar suas lojas”. No ano passado foi produzido o filme “Un día sin mexicanos” (Um dia sem mexicanos) do diretor, mexicano, Sergio Arau. O filme cria a história de uma crise econômica, política e social que abala a Califórnia depois que seus 14 milhões (um terço da população californiana) de imigrantes sul-americanos deixam o estado.

Estima-se que só nas principais cidades norte-americanas residam mais de meio milhão de brasileiros, a maioria ilegal. Em Houston, no Texas, vivem cerca de 300 mil brasileiros, dos quais 200 na clandestinidade; em Miami (Flórida) são 75 mil legais e 75 mil ilegais; na cidade de Nova York residem mais de 300 mil brasileiros, entre legais e ilegais; em Washington (Virgínia), a capital da república, há registro de pelo menos 44 mil brasileiros vivendo legalmente, não se tem notícia de ilegais. Estima-se que para cada brasileiro trabalhando legalmente nos Estados Unidos existam dois fora-da-lei.

De malas prontas e com visto clonado

Hoje, dia 24 de março de 2005 - um dia após o condutor de caminhão Tyrone Williams (jamaicano) ter sido condenado por transportar imigrantes ilegais em seu caminhão frigorífico, onde morreram 19 pessoas asfixiadas, das 70 que transportava – Paulo Soares, 25 anos, se prepara para emigrar via México para os Estados Unidos. Paulo diz que, ainda que vá fazer escala em território mexicano não pretende atravessar a fronteira a pé. Irá voando. Revelou ter contatado agenciadores especializados em visto americano clonado. Assim que desembarcar na Cidade do México, receberá o visto falso. Então, embarcará para Miami no mesmo dia. “Apesar do risco, o que posso fazer? Não vou ficar aqui e juntar em 30 anos o que juntaria lá em meses”, argumenta Paulo, que está com viagem marcada para daqui a um mês.

No dia em que se finalizava esta reportagem, sexta-feira, primeiro de abril, a Agência Estado divulgou uma matéria relatando a morte de dois brasileiros - marido e mulher, ela, 26 anos, dona de casa; ele, 35 anos, agricultor – enquanto atravessavam a fronteira entre o México e os Estados Unidos. A informação é a de que morreram em um acidente automobilístico.

Dois livros sobre o tema da imigração foram lançados recentemente no Brasil: “Brasileiros Longe de Casa” (Editora Cortez), da socióloga e pesquisadora da Unicamp Teresa Sales; e “Brasil Fora de Si” (Editora Parábola), do professor de história da USP José Carlos Sebe. O segundo cita parte da inscrição que está na base da estátua da liberdade em Manhattan: “Dê-me os seus exaustos, seus pobres, suas massas desnorteadas ansiosas por respirar livremente”. Versos da poetisa Emma Lazarus, morta em 1887. De lá para cá alguma coisa mudou.

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