Francisco Karam esteve no Ielusc, na semana passada, para lançar seu segundo livro: “A Ética Jornalística e o Interesse Público”. Karam é doutor em comunicação e semiótica e coordenador do curso de jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Nesta entrevista, ele comentou sobre alguns temas polêmicos que envolvem o dia-a-dia da profissão de jornalista.
Vamos falar do profissional que faz tudo. Por exemplo, um jornalista que tem o seu próprio jornal, onde ele mesmo faz os textos, fotos, diagramação. É possível estabelecer princípios éticos para esse tipo de profissional?
Karam - Acho que sim. Há alguns princípios jornalísticos que devem ser mantidos pra que a gente continue a manter o jornalismo como profissão. Quer dizer, contar periodicamente, em períodos cada vez mais curtos, imediatos e massivos, algumas coisas que se passam que são essenciais pra sociedade se enxergar, se mexer e opinar. É por isso que a informação não pertence nem à empresa e nem ao jornalista, mas à sociedade que vai se ver por meio de profissionais que dedicam a sua vida para fazer esse desdobramento da sociedade para si mesma. Nesse sentido, existe um compromisso com a sociedade e esta é a grande legitimidade moral do jornalismo, por isso que ele invade alguns setores, porque invade com essa legitimidade, ele busca isso porque tem alguma finalidade moral, que é fazer as pessoas conhecerem, e isso vem do direito social da informação. Acho que nem toda redação de grande mídia exerce aquilo que classicamente, historicamente se consolidou chamar de jornalismo, e muitas assessorias fazem, em algumas situações, muito melhor jornalismo que se faz em algumas redações. Hoje, como existe um volume muito grande de informações, é impossível tratar desse volume em qualquer mídia. Isso faz com que haja uma necessidade técnica, moral, de informação segmentada e de qualificação dessa informação, seja em pequenas empresas, grandes empresas, pequenos ou grandes sindicatos. Todos esses setores podem trabalhar a informação que a grande mídia não trabalhou, ou trabalhá-la diferentemente. Então os princípios morais da atividade devem ser, no meu ponto de vista, buscados também no setor segmentado porque é uma necessidade social de conhecer. O que, claro, seria colocado em cheque é: se a pessoa presta assessoria ou tem uma, ou se é contratado ou se tem uma assessoria, ou uma microempresa que presta serviços, se ele tem ou não limites pra exercer aqueles princípios jornalísticos que são diferentes dos tradicionais. Então, parece que uma das grandes questões do jornalismo é: é possível continuar fazendo jornalismo com esses valores? É possível por causa dos limites ou só é possível fazer-se jornalismo à medida que todos fizerem um pouco desse jornalismo por meio de uma multiplicidade de meios, com diferentes proprietários, com diferentes temas, com diferentes fontes, com diferentes abordagens? Parece que está relacionado aí nesse aspecto o futuro do jornalismo e a possibilidade de efetivamente se democratizar a informação e a comunicação, multiplicando os meios, os canais, as propriedades. Isso faz com que haja aquilo que é primário no jornalismo: é necessário haver uma controvérsia ou contraditório e isso deve ser colocado à disposição do público. Isto é, recuperar no jornalismo a idéia de cenário de debate público e de conhecer esse debate por meio de confrontação de idéias.
Como dar atenção ao interesse público se os veículos trabalham dentro das normas de publicidade e marketing?
Karam - Eu acho que se vive permanentemente um conflito onde existem temas que são de interesse público, mas não são muito polêmicos. Por exemplo, a denúncia contra o poder público acaba sempre ocupando algum espaço. Há jornais que trabalham com isso, mas nem sempre exercem a busca do interesse público, porque se tomarmos por exemplo jornais como a Folha de São Paulo, o Estado de São Paulo ou revistas como a Veja ou canais como a televisão Globo, em muitos momentos se cumpre esse objetivos de buscar atender o interesse público, geralmente em relação ao poder público, em alguns casos em relação à empresa privada que ocupa um espaço público, que sonega ou está envolvida em corrupção. O problema é que nenhum desses meios consegue ir a fundo quando ele tem interesse, e cada vez há mais interesse. Se pegarmos o sistema Telebrás, privatização do sistema de telefonia, a TV Globo fez campanha pra privatização do sistema Telebrás, mas ela tinha interesse direto na aquisição de ações. Viu-se toda uma campanha baseada não tanto nos fatos e dados disponíveis, mas na retórica, no discurso, na argumentação de que o serviço público é ineficiente, que é preciso modernizar a telefonia, que isso será um marco na redefinição da qualidade de vida do povo brasileiro e uma série de discursos que estão mais ancorados na retórica. Nesse sentido, ela não fez a defesa do interesse público. Por isso que essa pluralidade de mídias é muito importante pras pessoas conseguirem confrontar essas idéias. O interesse público continua sendo, assim como isenção e imparcialidade, continuam sendo valores que aparecem nos códigos éticos jornalísticos, não apenas pelos jornalistas, mas também pelas empresas, porque se reconhece que o grande valor moral do veículo é a informação, embora se saiba que cada vez mais, em alguns temas-chave, há uma contaminação cada vez maior das pautas pelo interesse da empresa ou pela lógica de um sistema de governo que se quer ver consolidado.
Dentro das restrições do mercado atual, o que seria uma informação de qualidade?
Karam - Uma informação de qualidade tem que ser um texto bem escrito, preciso no ponto de vista técnico, no uso do verbo, nos dados corretos, e, mais do que isso, no uso de fontes variadas, de tal forma que o público possa ter uma concepção um pouco mais complexa do caso que está sendo tratado. Então, a precisão é muito importante. A questão da pluralidade de fontes me parece um outro dado importante de se conseguir estabelecer uma espécie de contraditório pras pessoas saberem, ainda que de forma sintética, o que pensam os determinados setores sobre determinado fenômeno. Parece-me, que a relevância social na escolha da pauta é muito importante também.
A pressão do poder político e econômico atua de forma sutil e acaba levando os jornalistas à autocensura. Quem se autocensura para preservar o emprego fere a ética?
Karam - Eu acho que o profissional não deve se autocensurar, eu acho que ele deve publicar. A censura cabe à empresa. Se ela quiser censurar e demiti-lo é um risco que ele corre, mas ao se autocensurar ele tem que saber que ele não está mais fazendo jornalismo. Ele está apenas fazendo alguma coisa, que é atender determinados interesses, então moralmente isso afeta a sociedade. Moralmente ele pode justificar que ele precisa do emprego, mas se todas as pessoas que precisassem do emprego fossem usar alguns métodos ilícitos, ou alguns métodos duvidosos, nós simplesmente iríamos exatamente pra onde nós estamos indo. Quer dizer, pra uma espécie de barbárie coletiva, uma barbárie global. Isso significa então que nós voltamos ao tempo da guerra entre tribos. Pela sobrevivência eu vou matar o outro, vou roubar comida. Então não é um projeto de sociedade mais igualitária, mais justa, é um projeto de salve-se quem puder. Isso é muito ruim para o jornalismo, no sentido geral, porque contamina a própria profissão.
Já que você aborda no livro o futuro da profissão de jornalista, como você acha que tende a ficar, daqui pra frente, a situação dessa profissão?
Karam - Acho que tem alguma coisa que é necessidade mesmo, porque jornais também não podem abrir mão de ter credibilidade, porque esse é também um valor grande para eles se manterem, inclusive como negócio. E essa é uma esperança que nós temos. E acho que também, além da qualificação profissional, existe outro aspecto central: é fundamental que, num plano global, se fortaleça a idéia de democratização, democracia na mídia, na informação jornalística. Isso significa que devem ser ampliados os meios de comunicação em termos de propriedade, em termos de fontes, em termos de temas, e deve ser fortalecida a imprensa regional, porque é uma forma de se contrapor aos grandes conglomerados que cada vez mais dominam o conjunto do mercado.
Você acha ético o uso de métodos ilícitos como câmeras ocultas, falsificação de identidade e escuta telefônica para conseguir informações?
Karam - Muitas vezes não usar isso é antiético. Alguns códigos que estão nos manuais jornalísticos como de O Globo ou Zero Hora dizem que esses métodos não devem ser usados, mas sempre tem uma vírgula, sempre tem um complemento. Nunca deve ser usado, vírgula, a não ser em casos excepcionais, quando a informação de extremo interesse só poderá ser obtida usando alguns métodos. É por causa disso que hoje o consenso é: não se deve usar, a não ser em casos excepcionais. Não se deve banalizar, mas há casos em que é absolutamente legítimo, porque o jornalista acaba entrando num campo em que apenas ele contém o germe da esperança, capaz de dar voz a aspectos da sociedade que não vêm à tona se ele não atuar. Então, o que acontece? O jornalista acaba fazendo um trabalho que não caberia originalmente a ele. Muitos jornalistas acabaram premiados por isso, porque foram além do seu dever, buscando declarações para investigar alguns aspectos extremamente relevantes pra sociedade.
Será que isso não acaba mostrando a fragilidade das instituições e banalizando ainda mais o crime?
Karam - Tem casos que são ridículos, como alterar a identidade ou usar câmera oculta em casos que poderiam ter investigação regular, persistente. Isso não pode ser um pano de fundo pra preguiça. Mas em casos excepcionais tem sido legitimado em vários países. Tim Lopes, por exemplo, usou uma câmera oculta. Mas o Tim Lopes seria antiético ao usar câmera oculta? Acho que não. Ele foi legítimo, porque fez muitas matérias que deram certo, foram altamente elogiadas por causa disso. Uma não deu, foi morto, é um risco. Mas as pessoas daquela localidade estavam cansadas de chamar a polícia, descrentes na Justiça, no estado. Você recorre e chama a imprensa. O repórter vai lá e isso não aparece. Ele vai e diz: eu sou repórter e quero entrar no manicômio porque me disseram que estão torturando 100 pessoas por dia aqui. As fontes dizem: que mentira, isso nunca houve aqui! Pode vir amanhã que nós vamos recebê-lo. Daí chega lá no outro dia e tem tapete vermelho, galinha assada. Como essa realidade não transparece tal qual é, o que ocorreu na história do jornalismo? Foi a legitimação de determinados atos, o jornalista entra clandestino e consegue ver umas pessoas tirando o dente da outra, com uma martelada. Isso legitimou o jornalista pra dizer: eu sou testemunha disso. O poder público foi obrigado, em muitas situações, a tomar medidas, discutir isso publicamente e mudar os métodos de tratamento dos presos com base em quê? Em assuntos que vieram à tona porque jornalistas usaram esses métodos.
O que você acha da criação do Conselho Federal de Jornalismo?
Karam - Sou a favor. Não vejo nenhum argumento que justifique a não-existência do conselho. É preciso ter cuidado na redefinição do projeto para, efetivamente, não ter um controle sobre a imprensa, sobre o jornalismo. Esse será um espaço muito importante de afirmação e de consolidação desses princípios, da criação e consolidação do ethos jornalístico, da criação e defesa de determinados princípios éticos, da concessão do registro mediante alguns requisitos jornalísticos básicos como, por exemplo, ter formação. Ao mesmo tempo, fiscalizar quando isso não é bem feito, chamar a atenção, ir a julgamento sobre questões éticas muito claras. O argumento mais ridículo que eu ouvi foi de que ele cercearia a liberdade de expressão, quando os controles internos nas redações estão cerceando a liberdade de expressão o tempo inteiro. Então as empresas adoram isso. Mas acho sensacional: o anunciante impede tal fonte de se manifestar porque é concorrente ou porque vai fazer uma denúncia. São argumentos em que eu vejo que há um desespero pra tentar minar um projeto, que na verdade é um projeto de identidade profissional, então não existe nada melhor do que a própria categoria definir a sua auto-regulamentação, definir a sua concessão de registro ou, eventualmente, em casos extremos, a cassação.