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Matéria 0660, publicada em 14/05/2004.


:Cleide Carvalho

Lembranças sepultadas passam despercebidas

As memórias que às vezes são esquecidas

Cleide Carvalho

À deriva, flutuando pelo centro de Joinville, os caixões descem pela Hafenstrasse (Rua 9 de Março) em um dia de muita chuva e de maré alta, no ano de 1851. A cheia desfez túmulos, arrancou as lajes e fez esquifes boiarem em pleno dia pelas ruas centrais do pequeno povoado que ainda era Joinville no meado do século 19. O primeiro cemitério foi construído em uma planície, local impróprio para uma cidade na qual sempre choveu e onde a maré alta era e ainda é constante.

O cemitério localizava-se onde hoje fica a loja de calçados Apollo e a Drogaria Catarinense, esquina das ruas 9 de Março e Dr. João Colin. Os imigrantes, primeiros moradores do vilarejo, aflitos por ver os restos mortais ir corredeira abaixo resolvem assim, em uma pequena colina na Mittelweg (Rua 15 de Novembro), fazer o Cemitério do Imigrante. Lá estão enterrados os primeiros imigrantes, aqueles que colonizaram a Schroedersort, que mais tarde passou a se chamar Colônia Dona Francisca e hoje Joinville.

Em 27 de dezembro de 1851 foi realizado o primeiro sepultamento: o tenente da Marinha da Alemanha Carl Andreas von Burow, de 27 anos, passageiro da Barca Colon, que trouxe os primeiros imigrante europeus. O jazigo do tenente da Marinha é individual, nele tem uma cruz decorada com conchas e uma âncora em alto relevo bem no alto. Seu túmulo está com o número 365. Fica ao lado esquerdo do monumento em comemoração ao Centenário da cidade.

Antes de von Burow, 45 pessoas já haviam morrido desde a chegada da Barca Colon e do desembarque dos primeiros 118 imigrantes. Foram estes primeiros 45 túmulos os atingidos pela cheia e maré alta de 1851. Não se sabe quantos caixões ficaram à deriva pelas ruas centrais. Depois de inaugurado o Cemitério do Imigrante eles foram transladados para lá.

Ao lado de Carl Andreas von Burow está enterrado, no jazigo 366, Wilhelm Johann Friedrich Fettback, que faleceu em 14 de novembro de 1907. Iria completar 48 anos um mês depois da data da sua morte (nascido em 13 de dezembro de 1859). Esse é um dos túmulos que tem o epitáfio na lápide ainda intacto. Está escrito em alemão: Hier ruht unser lieber Vater. Sein platz ist in unser Haus so leer. Er reich uns nicht mehr die Hand. Der Tod entriss das freudenband. A tradução é a seguinte: “Aqui descansa nosso pai. O seu lugar na nossa casa está tão vazio. Ele não nos estende mais a mão. A morte o arrancou do meio dos seus amigos”.

O total de túmulos é 490, onde são enterrados até cinco pessoas. Dentre eles 98 crianças, na maioria vítimas de picadas de cobra, malária, tifo, má alimentação e, acima de tudo, falta de atendimento médico. Nas lápides junto aos túmulos recobertos de limo, quase apagadas, ainda se conseguem ler o nome de algumas crianças, como de Walter Fischer, túmulo 72, que morreu aos quatros anos. A lápide do túmulo de Eva Louise Parucker está perfeitamente visível, não parece ter quase 100 anos. Eva faleceu com dois anos em 1908. Acima do seu nome está escrito: Hier Ruht, aqui descansa. Abaixo está: Schulummre Sanft, descanse em paz. Seu jazigo é o número 64, fica próximo à rua.

Foram enterrados no Cemitério do Imigrante 3.199 pessoas durante 62 anos. Quando fizeram o Cemitério Municipal, em 1913, o do Imigrante foi fechado. Como existiam jazigos perpétuos, depois do fechamento ainda foram enterradas 36 pessoas de 1914 a 1923 com licença especial. Em 1961 aconteceu o ultimo enterro. Martha H. Berner morreu em São Paulo em 1956 e seus restos mortais formam transladados a Joinville para enterro ao lado de seus irmãos Wilhelm Berner e Dorothea Berner no jazigo 438.

Tombado pelo Patrimônio Histórico em 1962, o Cemitério do Imigrante está em estado precário pela ação do tempo e dos vândalos, que destruíram cruzes e picharam túmulos. Três anos atrás não havia vigilância. Como forma de manter o patrimônio foi criada a Casa da Memória, instituição cuja sede ocupa a antiga casa do coveiro. O cemitério está passando por reformas, mas ainda tem muito trabalho a ser feito. Na parte da frente está limpo, não tem mato, somente folhas secas de enormes árvores que ali fazem sombra. Nos fundos, no entanto, as ervas daninhas estão cobrindo os jazigos. Na parte de trás, mais em baixo não dá para ir, o mato é alto e alguns túmulos estão com a laje superior quebrada.

Segundo Erecina Stamm Gomes, 59 anos, coordenadora da Casa da Memória, a manutenção do cemitério é de responsabilidade da prefeitura. A iniciativa da restauração foi do prefeito Luiz Henrique da Silveira na sua ultima gestão. Mas como os custos são altos, está sendo recuperado por etapas. “Na questão da limpeza dos túmulos o patrimônio não permite. Os jazigos estão sensíveis e podem se deteriorar com a lavagem. O governo federal vai mandar verbas, para uma restauração mais minuciosa, com ajuda de arquitetos”, acredita.

Edela Herrmann, 57 anos, integrante da Casa da Memória e funcionária da Sociedade Cultural Alemã, está há poucos meses lá. “Estar aqui não é um trabalho e sim uma terapia. Quando alguém vem procurar os túmulos de seus antepassados e podemos encontrar dá muita satisfação. Aqui também posso exercitar meu alemão. Nas reuniões que fazemos, falamos em alemão”, ressalta. Os visitantes que vão ao cemitério são acompanhados por Nivaldo Seibel, 68 anos, voluntário, e Edela. Ambos falam alemão e traduzem os epitáfios nas lápides dos túmulos, passam informações sobre o cemitério e indicam os jazigos das pessoas mais ilustres que estão enterradas ali.

Todo primeiro domingo do mês se realiza na Casa da Memória, através da Sociedade Cultural Alemã, concertos matinais. A última apresentação, dia 2 de maio, teve o “Domingo Musical com Arte e Cultura”. Cerca de 150 pessoas passaram por lá para conferir o evento. A primeira parte foi um teatro em alemão: a história da Chapeuzinho Vermelho. Os atores que interpretam os personagens Lobo Mau e Chapeuzinho Vermelho são alemães que estão no Brasil através do intercâmbio. Na segunda parte, o público ouviu música popular brasileira. A Casa da Memória fica no Cemitério do Imigrante à Rua 15 de Novembro, 1000. Fone: 433-5598.

 

Confira o nome dos imigrantes mais célebres que estão enterrados no cemitério:

Ottokar Doerfell (1818/1906), o terceiro prefeito de Joinville. Fundador da Sociedade Harmonia-Lyra, Sociedade Ginástica, Sociedade de Atiradores, Kolonie-Zeitung (primeiro jornal impresso de Joinville). Túmulo: 448

Frederico Brustlein (1835/1911), incumbido pelo Príncipe de Joinville de administrar seus bens. Nono prefeito de Joinville. Construtor da primeira rede de água potável da cidade e responsável pelo plantio das palmeiras da Alameda Brustlein, conhecida como Rua das Palmeiras. Túmulo: 420

Georg Klaus von der Decken (1814/1847), um dos precursores da aviação na Alemanha. Túmulo: 451

Eugen Johann Gottlieb (Bogdan) Schmidt (1846/1914), que deixou grande descendência, entre eles os fundadores da Fundição Tupy. Túmulo: 360 b

Félix Heinzelmann (1860/1898), um dos fundadores do Corpo de Bombeiros. Túmulo: 428

Outras famílias têm suas sepulturas no Cemitério do Imigrante: Boehm, Colin, Delitsch, Fischer, Grossenbacher, Pfützenreuter, Hansen, Jordan, Krisch, Lepper, Müller, Parucker, Ravache, Rosenstock, Rosskamp, Schlemm, Vogelsanger, von Lange, entre outros.

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