Sérgio Matias Maia, 34 anos, trabalha há 10 na Empresa Brasileira de Compressores S A (Embraco). Seu dia a dia é entre compressores, aquela bola preta que fica atrás da geladeira, produto com o qual a companhia é líder mundial no segmento. A participação no Círculo de Controle de Qualidade (CCQ) o levou, juntamente com seu grupo, a desenvolver trabalho voluntário em prol do Hospital Municipal São José. Primeiro, foi feita a reforma de um quarto desativado. “O quarto parece um apartamento”, brinca Sérgio. Depois, veio a necessidade de melhorar, de alguma forma, a vida dos pacientes, que acabou levando ‘a criação do grupo “Histórias de Alegria”. Semanalmente, quatro ‘atores’ permanecem uma hora contando histórias para crianças internadas. O maior retorno do trabalho vai muito além do reconhecimento da comunidade. Na opinião de Sérgio, nada paga o sorriso dado por uma criança, afinal, o sorriso é mais que uma contração de músculos, é expressão de felicidade.
Primeira Pauta – Como começou a iniciativa do voluntariado dentro do grupo de CCQ?
Sérgio Matias Maia –Tudo teve início, quando assisti o filme Pacth Adams – o amor é contagioso, no qual “um estudante de Medicina arma a maior confusão quando começa a tratar os doentes usando o riso como remédio”. Levei a idéia para o grupo de CCQ Rumo Certo, formado há cinco anos. O grupo achou que seria legal. Fomos, então, amadurecendo a idéia. Uma pessoa deu uma idéia de ir em uma creche, outra num asilo, outra num hospital, ou um albergue. Surgiram várias idéias, mas resolvemos fazer o trabalho num hospital. Acabamos optando pelo Hospital Municipal São José que atende Joinville e região. Aí passamos a fazer contato.
PP –Até então vocês não tinham feito nenhum contato fora?
Sérgio – Não. Decidido que iríamos trabalhar num hospital, entramos em contato e fizemos um planejamento de como seria o trabalho, o que pretendíamos fazer e como seria em si. Depois das idéias definidas, conversamos com uma pedagoga e uma psicóloga do hospital. Apresentamos nosso trabalho, nossas idéias, e o que queríamos fazer lá dentro. Eles analisaram a proposta, e deixaram muito claro o que podíamos fazer. Havia muitas coisas que não podíamos fazer.
PP – Que tipo de limitação foi imposta?
Sérgio – Você não pode levar comida e doces ao hospital. Alguns tipos de materiais que usaríamos nas apresentações de teatro, como isopor, não podiam ser utilizados. Tudo isso, para evitar que crianças recém-operadas ou que têm alguma doença passível de contaminação, sejam prejudicadas. Além dessas precauções, temos que ter uma série de cuidados com a higiene. Ao chegar e sair do hospital, temos que lavar as mãos, por exemplo.
PP –Vocês fizeram algum treinamento dentro do hospital?
Sérgio – Há uma área dentro do hospital, de treinamento contra infecção hospitalar, e realizamos este treinamento.
PP – E depois?
Sérgio – Depois do planejamento pronto e de termos feito o treinamento no hospital, optamos por fazer um trabalho de contar histórias e por isso o grupo se chama “Histórias de alegria”. No início, queríamos fazer brincadeiras com as crianças. Levar carrinhos, bichinhos, bonecas e outros brinquedos de entretenimento, levar desenhos, jornais, uma série de coisas. Depois de muitas análises vimos o que podia ou não ser feito, e decidimos trabalhar com contação de histórias. Não tinha exatamente muito a ver com o filme, porque eles fazem muitas brincadeiras e pegam as crianças no colo. Não podíamos fazer isso. O hospital pediu que evitássemos, ao máximo, manter contato físico com as crianças, por isso, também, a opção por contar histórias, porque você acaba tendo um contato mínimo com as crianças. E é um trabalho muito gratificante. Depois dos contatos feitos, levamos a proposta para a gerência da empresa, porque precisávamos do aval deles.
PP –Quantas pessoas participam do grupo?
Sérgio – Hoje são 16 pessoas. Os integrantes do grupo de teatro da empresa, que existe há oito anos, também participam.
PP –Quando o trabalho iniciou?
Sérgio – Em 2001. Mas o trabalho no hospital – alegrar as crianças – começou em setembro de 2002. Enquanto a gerência da empresa analisava o projeto, mantínhamos contato com o hospital, e íamos aperfeiçoando o trabalho. A certa altura, descobrimos uma ala que estava desativada no hospital. Eram dois quartos grandes e o hospital não tinha condições de reformar. Então o grupo pediu para a Embraco doar o material da reforma e o hospital cedeu a mão-de-obra. O quarto ficou ótimo, até parece um apartamento. Após a reforma do quarto, percebemos que para iniciar o trabalho precisávamos de preparo, de treinamento. Não era simplesmente chegar no hospital e contar uma história, não é assim.
PP –Qualquer pessoa pode entrar no hospital e fazer voluntariado?
Sérgio – Não. Eles justificam isso dizendo que todos os dias aparecem pessoas querendo fazer algum tipo de trabalho, mas, a maioria delas vai uma, duas, três vezes e depois não vai mais. Então as crianças ficam esperando. O nosso grupo criou raízes e vai toda semana. Você não pode prometer uma coisa e não voltar mais. Às vezes, algumas pessoas aparecem lá querendo fazer “voluntariado” e, na semana seguinte, saem pedindo material para o hospital. Por isso é preciso estabelecer uma relação de confiança com o beneficiado. No início deste trabalho, fomos obrigados a fazer um contrato com o Hospital São José, que é muito claro quanto ao compromisso que temos. Se você faltar alguma vez você é eliminado, a menos que justifique. O contrato é bem rígido. Depois da reforma da sala, dedicamos um tempo ao nosso preparo.
PP – Quanto tempo?
Sérgio – Foram cinco meses. Mas, sempre mantendo contato com o hospital e dizendo: “ó, estamos nos preparando, vamos realizar o trabalho”. Contar histórias não é tão fácil quanto parece. Não é a mesma coisa que você contar uma piada para um amigo, ou contar uma história para o seu filho, que certamente vai rir de você. Agora, num hospital, onde crianças estão sentindo dor! Imagine, que você chega no hospital, conta a história e a criança vira para o lado e nem te dá atenção. Você acaba desanimando. Então tivemos que nos preparar para esses tipos de dificuldades também. O diretor do grupo teatral, Silvestre Ferreira, nos deu um curso de 40 horas para aprendermos algumas técnicas indispensáveis para este trabalho e também participamos de um curso ministrado pelo Sesi sobre voluntariado, que foi fundamental para entendermos o que podíamos falar e prometer. Por exemplo, você não pode ir em algum lugar ficar prometendo um monte de coisas, e dizer: “Amanhã nós viemos aqui trazer isso ou aquilo”, sabendo, principalmente, que você não tem condições de cumprir. É o nome da empresa que está em jogo. Se não conseguimos algo, tudo bem, se conseguimos, ótimo.
PP – Depois da fase de treinamento, qual foi o próximo passo?
Sérgio –Montamos um cronograma e uma escala, dividimos a equipe em quatro grupos de quatro pessoas, de forma que toda semana um grupo estivesse no hospital. Sentimos, naquele momento, que estávamos preparados . O hospital é um ambiente muito pesado e se você não estiver preparado acaba desistindo. O hospital aprovou o trabalho e viram que era um projeto sério, e o fato da empresa estar apoiando ajudou muito.
PP –Vocês fizeram alguma demonstração para o hospital de como seria o trabalho?
Sérgio – Sim. Fomos ao auditório do hospital e fizemos um dia de contação de histórias já com o nosso figurino. A partir daí, cada grupo montou sua maneira de contar histórias, criou seu próprio estilo. Um grupo lê, outro vai com violão e outro decora. Você vai a um grupo hoje é de uma maneira, na semana que vem é de outra. Não há um padrão.
PP – A cada visita, há uma história diferente?
Sérgio – Sim. Cada grupo tem uma média de seis histórias diferentes. E nós estamos sempre mudando. E, também, a cada semana as crianças geralmente não são as mesmas.
PP –Há restrição com alguma criança?
Sérgio – Sim. As enfermeiras nos alertam se alguma criança fez alguma cirurgia, por exemplo, e não pode rir. Elas nos dizem: “Nesse quarto vocês não podem entrar hoje”, ou, “a criança tal, no leito tal, não pode receber a visita”.
PP – Como é a receptividade dos médicos?
Sérgio – Na maioria das vezes encontramos algum médico ou enfermeira nos quartos. Eles aprovam nosso trabalho, porque já foi comprovado cientificamente que este trabalho impacta positivamente na melhora das crianças. A contação de história incentiva a criança a se recuperar. Muitas vezes, ajudamos as crianças a vencerem o trauma de algum tipo de medicação ou de injeção.
PP – Como foi o contato com o grupo Doutores da Alegria, que atua em São Paulo?
Sérgio – Eu nunca tinha ouvido falar desse grupo. Um dos gerentes da empresa tinha ido fazer um curso em São Paulo e teve uma palestra com o Wellington Nogueira, que criou o grupo aqui no Brasil, depois de participar do grupo fundador nos Estados Unidos. Então a empresa os trouxe para nos contar a experiência vivida em São Paulo, Rio de Janeiro e na Bahia. Eles não são voluntários. É uma empresa que sobrevive com patrocínio de grandes empresas. Eles fazem trabalhos em hospitais e também treinam voluntários. Se uma empresa não tem voluntários para fazer este tipo de trabalho, ela contrata os Doutores da Alegria para fazer o trabalho.
PP – Vocês ainda fazem algum treinamento?
Sérgio – Sim. Se o meu grupo vai ao hospital na quinta ou na terça, nós nos reunimos com o diretor de teatro para passar o que estamos fazendo, porque às vezes, a gente pensa que está fazendo a coisa certa, mas não está. Recentemente fomos em uma livraria, passamos uma tarde escolhendo livros de histórias infantis. Foi muito bom, para refletirmos que não podemos levar qualquer história para contar às crianças. Óbvio que não podemos levar uma história de terror, por exemplo. Precisamos também tomar o cuidado de não contar uma história que lembre algum tipo de preconceito, pois pode acontecer de uma criança sofrer aquele preconceito.
PP –Vocês vão uniformizados?
Sérgio – Nós temos um jaleco branco e alguns vão com uma bola vermelha no nariz, outros com um chapéu ou com boné. Mas, estamos reformando nosso uniforme que irá ser um guarda-pó branco com muitos detalhes coloridos e eu também, estou desenvolvendo um trabalho com fantoches. Além disso, tenho uma mala de rodinhas que é cheia de adesivos de desenhos animados e dentro dela coloco os fantoches e várias outras coisas. Tudo que você precisa você tira de dentro dela. As crianças ficam muito curiosas e querem saber o que tem lá dentro. Andamos no corredor do hospital puxando aquela mala e isso desperta a curiosidade até mesmo dos médicos e enfermeiras.
PP – Como é o contato com as crianças?
Sérgio – Durante o treinamento nós percebemos, muito claramente, que a criança é o ator principal do nosso trabalho. Estamos lá fazendo um trabalho voluntário, aí nós chegamos em um quarto e dizemos: “Podemos contar uma história”. Não obrigamos ninguém a nada. Se alguém diz não, nós vamos embora. Às vezes, chegamos em um quarto que tem 10 crianças. Seis delas não querem ouvir a história e quatro querem. Então contamos a história só para aquelas quatro crianças. Já aconteceu, várias vezes, de chegarmos a um quarto e uma criança não querer ouvir. Quando ela vê outra criança rindo ela passa a querer ouvir também. Muitas vezes, precisamos conquistar as crianças, porque têm crianças que ficam no hospital duas, três semanas ou até um mês. Já aconteceu de sairmos do elevador e encontrarmos crianças esperando por nós. Elas dizem: “Os palhaços – elas no chamam de palhaços – chegaram”. Muitos pedem para irmos ao seu quarto que tem um amiguinho novo que esta nos aguardando.
PP – As crianças fazem “propaganda” sobre vocês?
Sérgio – Sim. Mas também já aconteceu de encontrarmos crianças chorando, a gente começa a contar e o sorriso é inevitável. Naquele momento o nosso trabalho a ajudou. Às vezes, é meia hora em que ela deixou de sentir alguma dor. Isso já é um ótimo retorno. A idéia é você levar momentos de alegria para elas e o seu sorriso é a nossa maior gratificação.
PP –E como é o contato com os pais das crianças?
Sérgio – Na maioria das vezes, sempre tem algum pai ou mãe com os filhos e nós já ouvimos muitos agradecimentos. Eles vêm conversar com a gente. “Obrigado”, “o trabalho de vocês é muito bom”, “meu filho estava chorando e agora está rindo”.
PP – Quantas pessoas estão atuando nesse momento?
Sérgio – O grupo é formado por 16 pessoas, mas, só 12 estão atuando.
PP –Vocês têm acompanhamento psicológico?
Sérgio – Sim. Porque, queira ou não, você acaba se envolvendo com o problema das crianças, e muitas vezes traz isso para dentro de sua casa. Nós vemos muitas dificuldades e às vezes a gente não consegue fazer o sorriso de uma criança. Isso acaba abalando muito o voluntário, que fica desmotivado e se questiona: “Será que o meu trabalho não é legal”. Mas, não somos os culpados, então cuidamos muito com isso e fazemos terapia em grupo, ou, quem preferir, faz sozinho. Além disso, temos que cuidar para que a criança não se sinta um “coitadinho”. Ninguém é coitadinho. A pessoa está lá por algum motivo.
PP – Vocês pretendem estender este trabalho para pessoas fora da empresa?
Sérgio – Por enquanto não. Este trabalho é muito complicado, porque algumas pessoas já desistiram, foram três ou quatro. Às vezes você pensa em ir ao hospital fazer trabalho voluntário, como é o nosso caso, mas não é fácil. Ninguém pode pensar, “Amanhã vou chegar no hospital, contar uma história e inventar alguma coisa na hora”. A pessoa precisa pensar que há toda uma preparação. Se você vai contar do chapeuzinho vermelho, você não vai simplesmente contar a história ou imitar outras como a da vovozinha, do lobo mau ou da menina. A maneira como você apresenta e os gestos que faz precisam ser bem ensaiados.